ISBN: 978-85-63552-05-1
Título | Estratégias contemporâneas de inclusão da imagem de arquivo no cinema |
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Autor | Anita Leandro |
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Resumo Expandido | Jacques Derrida diagnosticou um verdadeiro «mal de arquivo» em nossas sociedades, se referindo às situações de dissimulação, de destruição, de interdição e até mesmo de recalque de arquivos que marcaram os desastres do final do último milênio. Como modular, na filmagem ou na montagem, os efeitos do excedente e da carência de imagens? Como, através do cinema, arbitrar, oferecendo às imagens do passado a possibilidade de reaparecerem em sua materialidade, em sua condição de vestígio?
Uma dessas experiências consiste em trazer o arquivo para a frente das câmeras e filmá-lo como um personagem à parte, com o qual podem interagir as pessoas filmadas. A imagem de arquivo é abordada como uma matéria viva, que encontra no espaço das filmagens um campo de ação. Introduzida no set das filmagens, a imagem do passado torna-se um problema do presente e passa a interferir diretamente na qualidade da palavra filmada. Num filme de título premonitório, Onde jaz o seu sorrizo?, feito para a série Cinéastes de notre temps, Pedro Costa faz um retrato quase sem palavras do casal Straub-Huillet. Pouco antes de morrer, Danièle Huillet dá uma oficina para os alunos do Fresnoy, durante a qual ela remonta, ao lado de Jean-Marie Straub, o filme Sicilia. Pedro Costa filma os gestos precisos da montadora, a tensão na hora dos cortes e as imagens de Sicilia que desfilam na telinha da moviola. Um diálogo silencioso se estabelece entre o casal de cineastas e suas imagens. Pedro Costa não lhes faz nenhuma pergunta, assim como não acrescenta a posteriori, na montagem, nenhuma imagem externa à situaçao filmada. Se atendo apenas à magia do instante presente, o momento da interlocução dos Straub com suas próprias imagens, ele consegue captar o combate dos cineastas e da matéria. Um procedimento semelhante é verificado em Falkeneau, de Emil Weiss. O documentarista filma Samuel Fuller diante das imagens que o grande cineasta hollywoodiano havia rodado com uma câmera 16 mm no campo de extermínio de Falkeneau, quando ele ainda era um mero soldado das tropas de liberação. Pela primeira vez depois da guerra, Fuller vê suas próprias imagens. Vemos os alemães que viviam próximo ao campo de extermínio, sob as ordens do chefe de pelotão americano, retirando das valas comuns os cadáveres nus dos prisioneiros, limpando-os, vestindo-os, envolvendo-os em lençóis brancos e levando-os, finalmente, em cortejo, para um cemitério. Fuller comenta as imagens e religa toda a sua obra de ficção posterior a esses registros históricos. Entendemos, então, o quanto a tomada de consciência do horror inenarrável da guerra foi decisiva para o jovem Fuller. Sem que muita coisa seja dita, apenas observando as reações de Fuller ao que ele vê, entendemos retrospectivamente os grandes temas da obra fulleriana : violência, loucura, prisão, guerra. Outra forma de atualização da imagem de arquivo consiste em investir nas potencialidades da montagem. Numa linha próxima de Guy Debord, Harun Farocki tem praticado um tratamento tão inovador quanto politizado da imagem de arquivo, que ele expõe enquanto tal, em sua «medialidade pura», como diria Agamben. No filme que realizou com Andrei Ujica sobre a queda de Ceaucescu, Videogramas de uma revolução, Farocki se limita a organizar 120 horas de imagens produzidas pela televisão romena e que foram difundidas ao vivo durante a rebelião de 1989. As imagens brutas da televisão são mostradas em estado bruto, sem qualquer «limpeza» por parte da montagem. E é o caráter bruto dessas imagens que vai revelar um aspecto da História bem menos conhecido do que a queda do comunismo, que é a intervenção da própria televisão no rumo dos acontecimentos. Seja na filmagem ou na montagem, os dispositivos contemporâneos de atualização da imagem de arquivo mostram que um longo trabalho de reflexão sobre o passado vem sendo desenvolvido pelo cinema desde as primeiras experiências desse gênero, realizadas por Dziga Vertov e Esther Schub. |
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Bibliografia | AGAMBEN, Giorgio. Moyens sans fins. Paris: Editions Payot & Rivages, 1995.
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