ISBN: 978-85-63552-05-1
Título | Documentário e memória: a história no indivíduo, o passado no presente, o cineasta no retrato |
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Autor | Cláudia Cardoso Mesquita |
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Resumo Expandido | Parece consenso nas interpretações sobre o documentário brasileiro atual (Xavier, 2000; Holanda, 2004; Lins e Mesquita, 2008) a presença significativa de discursos particularizantes. Nota-se a recusa de procedimentos totalizantes, representacionais, e mesmo interpretativos; o repúdio à voz de autoridade, à sinedoque explícita(os personagens tomados como tipos, em relação a um contexto englobante) e ao posicionamento dos sujeitos filmados como “informantes” (sobre uma temática). Em suma, evita-se remeter o dado pessoal a um quadro geral; nega-se os valores de certo “realismo” no cinema, para se afirmar outros valores.
Um deles é justamente a redução do enfoque, a abordagem da experiência de um único indivíduo (ou de poucos indivíduos). Por vezes, valoriza-se uma perspectiva pessoal e subjetiva pela enunciação (assumidamente parcial), e uma medida relacional (o filme como relação, diálogo e negociação entre quem filma e quem é filmado). O interesse desse movimento de particularização não impede que o vejamos como sintoma da dificuldade de se representar a experiência do “outro” hoje – especialmente se conjugada no coletivo. Problema análogo, talvez, àquele que Clifford (1998) nota na etnografia dos anos 80 e 90, ou que se observa no campo da história (com a crise da “história-síntese”, como aponta Vainfas). Um filme como Santiago (Salles, 2007), sem querer reduzi-lo a esta abordagem, parece-me quase didático na reflexão sobre este movimento, no documentário: de um discurso que se pretendia lugar da representação objetiva do “outro” (ainda que “outro íntimo”, já particularizado) àquele que prefere evidenciar a natureza subjetiva e negociada (ou imposta) de suas construções. Minha proposta com esta comunicação é contribuir para esta reflexão, abordando filmes documentais recentes em que a “particularização” é extrema. Refiro-me a três filmes “sobre” um único indíviduo, nos quais a relação com a história maior se faz, de algum modo, presente: Pan-Cinema Permanente (C.Nader, 2007), Vida (P.Gaitán, 2008) e Acácio (M.Rocha, 2008). Embora sua intenção manifesta seja o “retrato”, interessa pensá-los como ensaios históricos peculiares, nos quais a história coletiva atravessa a memória individual, o passado é refeito no presente, imagens de arquivo tensionam o que seria apenas evocação, e o diretor se afirma através do retrato, como escreveu I.Feldman a respeito de Santiago (2007). As diferenças entre os três personagens (Waly Salomão, Maria Gladys e Acácio Videira) não impedem que os vejamos como sujeitos “excepcionais”, cujos trajetos parecem “tremidos” por ou projetados na história. Os três filmes envolvem diferentes parâmetros na lida com a questão. Em Acácio, nota-se certo “perspectivismo” (Feldman, 2007). Amplificando na montagem relações e conexões, o filme apresenta os kiôko (povo tribal angolano) através das imagens do arquivo pessoal e da memória do Sr. Videira; mas também apresenta o personagem através dos kioko, pois ele fala de si (da experiência da velhice) através da partilha da memória sobre este povo. Em resposta à "materialização" do passado pelas imagens de arquivo, a diretora realiza imagens presentes da África, multiplicando associações – e tecendo, com o personagem, os liames da memória, “sistema” formado através de “associações de similaridade ou de contiguidade”, como lembra Eclea Bosi, estudando Bergson (1995). “Síria alguma se compara à Síria que trago intacta dentro de minha memória”, repete Waly Salomão em Pan-Cinema Permanente. Na impossibilidade de reviver um passado quase mítico (o da família migrante), Nader faz a viagem de volta e constrói com o amigo Waly imagens de uma Síria presente, numa das viagens realizadas juntos. Evitando, como em Vida, a simples rememoração, o filme produz algo como uma memória-ação, presentificada: o personagem performa com extremo talento interações e jogos nos quais se faz imagem para a câmera – imagem que, na montagem, já é matéria para lembrar e associar. |
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Bibliografia | BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e Imagens do Povo. SP: Cia. das Letras, 2003.
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