ISBN: 978-85-63552-05-1
Título | Berlim 10/90 (Robert Kramer): o cinema do desconforto, o documento da transcendência |
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Autor | Ursula de Almeida Rösele |
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Resumo Expandido | Observar um processo fílmico que transcende limites talvez provocados por uma idéia restritiva que se tem acerca dos parâmetros que separam o cinema documental do cinema fictício, tornou a experiência perturbadora de acompanhar um momento do cinema de Robert Kramer algo para além do notável. A junção desse momento aos ensaios enriquecedores de César Guimarães e Jean-Louis Comolli são elementos fundamentais para uma tentativa de compreensão das potencialidades do cinema de nos tirar do lugar cômodo de espectadores-receptores passivos de obras que geralmente não nos instigam os recônditos mais complexos de nossa mente, percepção e – por que não – postura política frente à arte.
O filme de Kramer consegue, através do rompimento de expectativas apresentando uma idéia de cinema sem os requintes estéticos e estratégias de movimentação de câmera próprios de um cinema dito tradicionalista; subverter toda uma experiência com a idéia clássica de representação e principalmente dos princípios do documentário. Como bem observa Guimarães, o cinema realizado por este cineasta coloca em crise o lugar do espectador, que se percebe na impossibilidade aparente de se projetar frente àquela experiência, num processo desestruturador de toda uma relação natural que se estabelece ao longo de uma projeção fílmica. Há, portanto, uma curiosa relação estabelecida entre a idéia de preparação anterior para a experiência (roteiro, decupagem) e toda a subversão de expectativa sofrida pelo próprio “criador” da obra, que, ao colocar-se exposto de maneira a transformar-se em personagem de sua narrativa, constrói um lugar para seu filme no qual não existe crise apenas entre espectador e obra, mas, principalmente, entre criador e criatura. Além disso, há o intermédio da câmera, quase num esforço não-passivo que vai além de sua própria condução, uma vez que registra todo o processo de imersão do diretor em sua obra, de maneira a desestruturá-lo e conduzi-lo a uma exaustão tal, que o tira do “conforto” do fictício para o confronto com o real. O título, o período em que o filme foi realizado (posterior à queda do muro de Berlim); tudo ali remonta inevitavelmente à memória da Guerra, do sofrimento dos judeus, e no processo todo de uma narrativa aparentemente pré-concebida, Kramer parece mergulhar aos poucos num lugar não premeditado de seu interior. Realiza, com a televisão e seu discurso acerca da montagem, uma experiência impressionante, uma vez que discute a montagem no decorrer de um plano contínuo sem cortes e, através de imagens passadas na televisão, consegue fazer – tanto no áudio distante do que ocorre ali, como nas imagens que ele registra pela segunda vez – um tipo de montagem paralela da junção de acontecimentos extra-banheiro com a imensidão falada. Como se suas palavras realizassem os cortes que a câmera não pode e a televisão expusesse seu inconsciente de maneira a sedimentar seu imaginário para um lugar que ele não consegue atingir na clausura em que se encontra. Guimarães e Comolli divagaram sobre o papel da câmera de Kramer, que ali metaforiza uma câmera de vigilância que observa o prisioneiro, deixando para o espectador a árdua tarefa de acompanhar seu martírio. Os espectadores estariam, então, representando também um papel ao tornarem-se personagens da saga de Kramer. Nessa medida, ele realiza uma obra que dialoga com o filme Shoah, uma vez que apela para recursos da memória e do subconsciente, como nos episódios em que Lanzmann afirmou ter se recusado a fornecer imagens para o irrepresentável. Em Shoah os espectadores se tornam ouvintes e em Berlim 10/90, os cúmplices. Somos transportados para um cinema do além, da transposição de limites, do mergulho político, da imersão na alma alheia, proporcionando o estreitamento de uma relação que, se não nos representa e não nos convida, nos ensina a ultrapassar nossos terrenos estáveis para o encontro duro, porém engrandecedor, de nosso papel no mundo e na arte. |
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Bibliografia | DANEY, Serge. A rampa: Cahiers Du cinema, 1970-1982: Serge Daney. – São Paulo: Cosac Naify, 2007.
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