ISBN: 978-85-63552-05-1
Título | O cineasta X o videomaker: o cinema de poesia em O homem urso |
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Autor | Marcelo Carvalho da Silva |
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Resumo Expandido | Além do encontro fatal entre o ambientalista americano Timothy Treadwell e um urso pardo, o filme O homem urso (Grizzly Man, 2005), do cineasta alemão Werner Herzog, apresenta outro embate, este, interior ao áudio-visual. Herzog põe em jogo outra relação que não a do entrevistador/entrevistado, ou a do diretor/dirigido. Entre Herzog e Treadwell, entre o cineasta-criador e o personagem-videomaker, há uma espécie de “corrida”, uma rotação de duas vozes protagonistas que tentam recompor a vida e a personalidade do próprio Treadwell.
Pareceu-nos que O homem urso se constituiria como propício a uma leitura a partir da tese do cineasta Pier Paolo Pasolini acerca do cinema de poesia. Em momento algum as vozes de Treadwell e de Herzog se misturam; ao contrário, Herzog faz questão de afirmar a diferença entre eles dois. Trata-se da difícil relação diferencial de um personagem que "nasce" para a montagem-consciência do diretor: enquanto o primeiro surge em meio a ações e atos de fala, o segundo se afirma pela escolha de uma montagem anti-ilusionista. Um personagem que age com modos estranhos em um filme que se vale de recursos “estetizantes”. No cinema de poesia (como, de resto, no cinema dito moderno) os personagens são vitimados por “algo”, são estranhamente afetados. Tal característica já havia sido atestada pela crítica quando do surgimento do neo-realismo italiano, identificando a falta de objetividade no comportamento dos personagens nos filmes do período. André Bazin via nesses filmes frágeis ligações entre personagens errantes e situações dispersas que envolviam-nos (BAZIN, 1991). Em uma crítica posterior, o filósofo Gilles Deleuze fala de personagens entregues a estranhas visões, mais videntes que actantes, que atuariam não sobre uma situação a ser transformada (em um esquema sensório-motor), mas de forma a evidenciar “imagens óticas e sonoras puras”, isto é, desconectadas de uma ação possível (DELEUZE, 1990). Com o cinema de poesia, tal como identificado por Pasolini, cada autor teria que contar com personagens problemáticos que impregnassem o filme e fornecessem ao cineasta a oportunidade de exercer um alto grau de liberdade estética e estilística. São como que duas vias distintas em um mesmo filme, a do cineasta, com suas intervenções formais anti-realistas; e a do personagem, onde o cineasta buscaria um estado psíquico em desordem que se torna dominante no filme – a subjetiva indireta livre. Surge, assim, diante de nós, com O homem urso, um filme que prima pelo hibridismo do material (imagens em vídeo, montagem cinematográfica), pela heterogeneidade dos resultados, pela polêmica entre as duas vozes dominantes (a presença de Herzog também se faz pela narração em off, o que dá um sentido ainda maior a esta presença) que se impõem diferenciando-se violentamente em um sistema que busca ser desequilibrado e intercambiante. A tônica é a da tensão entre os dois processos de subjetivação: Treadwell não pára de falar em “seu filme” e Herzog não corta sua fala, parecendo mesmo deixá-la fluir em demasia, mesmo quando dela discorda. Assim, o filme transita internamente pela diferença entre “dois filmes”: aquele em vídeo que Tradwell jamais finalizou, e o de Herzog, que se compõe sobre o filme em aberto do naturalista. O homem urso é o resultado dessa “costura fílmica”, desse “acordo” entre as intervenções de Herzog e o material gravado de Treadwell, entre o filme de Herzog e o “filme de Treadwell”, cada qual referenciado a seus próprios pontos de vista, suas próprias ancoragens, em um exercício poderoso de subjetiva indireta livre: não apenas a câmera de Herzog testemunha, de seu próprio ponto de vista, o que Treadwell vê do seu mundo, mas, ainda mais profunda e perturbadoramente, Herzog se põe a pensar sobre (montar) o material filmado por Treadwell, diferenciando-se perante as (e modificando as) imagens realizadas pelo personagem (Treadwell) que atua e vê. Cinema de poesia em seu mais alto grau. |
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Bibliografia | AMOROSO, Maria Betânia. Pier Paolo Pasolini. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
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