ISBN: 978-85-63552-05-1
Título | Ética, estética e mostração descomprometida. Notas sobre certa produção documental contemporânea |
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Autor | Marcius Freire |
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Resumo Expandido | O tema desta apresentação tem suas raízes em um debate que se seguiu à projeção do filme "Boca de Lixo", de Eduardo Coutinho, no Margaret Mead Festival de Nova York, em 1997. Alguém que, manifestamente, não pertencia ao mundo da cinefilia e muito menos ao universo dos estudiosos do cinema, perguntou ao realizador em que aquele filme tinha mudado a vida das pessoas nele retratadas. Se após sua realização algo havia mudado na sua dura realidade. Evidentemente, criou-se um certo mal-estar e Coutinho respondeu de forma muito pouco loquaz à questão que, naturalmente, não tinha uma resposta precisa e se tivesse seria “não, não houve qualquer mudança”.
Como se sabe, o filme em questão se empenha em mostrar um pouco da vida de um grupo de pessoas que sobrevive graças ao que coletam de um depósito de lixo da região metropolitana do Rio de Janeiro. Não é necessário dizer que muitas das cenas são francamente repugnantes. No entanto, Coutinho, graças à sua técnica de aproximação – de inserção, diria Claudine de France –, junto às pessoas filmadas, consegue nos fazer esquecer o ambiente nauseabundo em que elas trabalham e passamos a penetrar nas suas histórias de vidas, nos seus sonhos, decepções, projetos etc. e na relação de camaradagem que se instaura entre estas e o realizador. Seja como for, e em que pese a mudança operada na relação do espectador com os sons e imagens mostrados ao longo do filme, a pergunta sem resposta permaneceu incomodando: afinal, para que servem esses filmes? Que papel desempenham na busca do homem pela superação das desigualdades, pelo exercício de uma dignidade do estar no mundo que deveria ser um legado de todos? A sessão do Festival e a pergunta do espectador desavisado levaram-me ao encontro de um outro filme em que a miséria humana é mostrada em toda a sua crueza (são muitos os filmes que fazem isso, mas esse, em particular, vibrou, para mim, no mesmo diapasão de "Boca de Lixo"): trata-se do documentário "Titicut Follies", de Frederick Wiseman. Realizado em 1967, o filme mostra o dia-a-dia dos internos de um presídio para criminosos doentes mentais, chamado Bridgewater, em Massachusetts. Proibido neste estado até 1992, o filme trouxe grande notoriedade a Wiseman, que realizara, com "Titicut", seu primeiro filme. Limitando-se a mostrar e a fazer ouvir aquilo que presenciou no interior da instituição, Wiseman foi criticado por isso e por outros procedimentos que levaram à construção do artefato audiovisual. Jean Rouch, por exemplo, criticou o diretor por este não tomar posição no filme e apenas “mostrar” os eventos e as pessoas. Outros afirmaram que o filme trouxe muito mais notoriedade para Wiseman e causou muito mais discussão sobre a sua legalidade que para as condições do hospital. Se, para Foucault, “as instituições mentais são um lugar onde o comportamento das pessoas definidas como loucas está sempre sendo observado e julgado por aqueles que têm o controle, algo como um tribunal invisível em sessão permanente”, em "Titicut" Wiseman parece ser um dos membros desse tribunal. Isso porque a sua presença observativa nas situações as mais singulares, transforma-o em um perscrutador do comportamento dos internos e de sua relação com os funcionários da instituição. No entanto, ao não “tomar posição” e limitar-se, segundo Rouch, a apenas “mostrar”, aquilo que observava, Wiseman foi acusado também de violar a regras mínimas de decência e de ter usado câmeras escondidas. Nas duas obras acima citadas, os limites entre o público e o privado, entre o que pode ou não ser mostrado, foram demarcados por uma linha tênue, mas visível, própria a suscitar questões de ordem ética e estética. Em revanche, presenciamos hoje, notadamente nas TVs a cabo, uma certa quantidade de produções documentais – ou de falsos documentários - cujo traço distintivo é, justamente, embaralhar essa linha ignorando a ética em benefício de uma estética duvidosa. É sobre algumas dessas produções que nossa apresentação vai ser debruçar. |
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Bibliografia | BORDIEU, Pierre, Les règles de l’art. Genèse et structure du champ littéraire, Paris: Éditions du Seuil, 1998.
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