ISBN: 978-85-63552-05-1
Título | Um corpo esquecido, mas imaginado |
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Autor | Maria Noemi de Araujo |
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Resumo Expandido | “Corpo” (2008), ficção escrita e dirigida por Rossana Foglia e Rubens Rewald, desenvolve uma discussão sobre a identidade de um corpo sem vida. Não identificado, não reclamado por familiares, não deteriorado pelo tempo, traz uma etiqueta no dedão do pé com um número. Vem provocar estranhamento e dúvidas a sua chegada ao IML como um a mais de uma série, entre numerosas ossadas de vala comum trazidas de um cemitério clandestino (como se estivéssemos em São Paulo no início dos anos 90). Um jovem médico legista que deveria se ocupar da autópsia do cadáver, ao ver-se impactado diante do inusitado, se indaga sobre o sem nome e o não deteriorado. Isso faz desse instante o encontro entre um sujeito e um objeto. Desse encontro, o médico (sujeito) inicia a construção de seu relato sobre a identificação do objeto inventariando a sua rede de significantes.
A narrativa do filme transcorre em diversos momentos com personagens em torno do corpo exposto sob uma maca. São cenas recompondo em um círculo com médico, cientista, funcionário, fotógrafo e família, que em termos de trama, proporcionou um laço no campo social. A representação daquilo que a psicanálise chama discurso do mestre aparece na figura do especialista convocado para explicar o fenômeno. Ao tentar inscrevê-lo em seu discurso científico, o Estado dá uma resposta, como mais um caso de saponificação. Interessa-nos discutir, do ponto de vista da psicanálise, o estranhamento provocado por “Corpo”. O saponificado desencadeou uma divisão subjetiva no narrador ao mesmo tempo em que era considerado inútil pela Chefe do Serviço do IML e pelos demais colegas. As duas posições subjetivas convocam uma discussão das possibilidades de uso e apropriações de conceitos freudianos e lacanianos (recalque, chiste, manifestações do inconsciente, angústia, fantasma, pulsão etc.) pelo cinema. Um corpo que provoca estranhamento para uns é, ao mesmo tempo, sem sentido e hostil para outros. Isso nos permite indagar a contingência do filme que remonta sua dimensão política. Tanto a representação do estado de angústia do narrador que, diante da maca vazia no momento em que ele pressupõe que o corpo foi enterrado sem ser reconhecido, se desespera a ponto de nos evocar as cenas históricas da “angústia do goleiro diante do pênalti” como o estranhamento social que o filme provocou. Ao redimensionar o debate entre cineastas, psicanalistas, professores, artistas, intelectuais e movimentos sociais, pode-se dizer que o estranhamento produzido pelo filme no campo social nos indica uma leitura sobre a invenção do imperativo’ “esqueça” para ser feliz? O ter que se esquecer passa a ser, para o sujeito, um imperativo na medida em que o Ser feliz implica em esquecer. Diferentemente do corpo que Freud coloca no divã, com imagem e pulsão, isto é, “um organismo atravessado pela linguagem”, o saponificado é morto e conservado. Ao criar uma tensão entre os corpos freudiano e o saponificado, o filme nos oferece possibilidades de ir de um corpo da realidade (fragmentado, classificado, científico, burocrático, da polícia) ao da psicanálise como o da linguagem, do inconsciente (imaginário, real ou simbólico). As construções imaginárias do sujeito, este intrigado médico legista, nos levam a pensar sobre a existência de “Corpo” como um filme inscrito não só na história do cinema como da história política brasileira. |
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Bibliografia | AMIEL, V. Le corps au cinema: Keaton, Bresson, Cassavetes. Paris: PUF, 1998.
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