ISBN: 978-85-63552-05-1
Título | Assim é se lhe parece, interdições e dizeres em Na captura dos Fridemans |
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Autor | Cristina Teixeira Vieira de Melo |
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Resumo Expandido | O documentário Na captura dos Friedmans (2003) combina três tipos de arquivo fílmico para compor sua narrativa: 1) imagens da TV americana sobre o julgamento de Arnold e Jesse Friedman, acusados de pedofilia, abuso sexual e corrupção de menores, 2) vídeos familiares do clã Friedman com cenas corriqueiras, como festas de aniversário e passeios a praia, bem como com registros de discussões da família travados durante o processo judicial e 3) novas entrevistas produzidas pelo diretor Andrew Jarecki com alguns dos personagens que fizeram parte da investigação e do inquérito policial e também com outros profissionais.
Ao sobrepor imagens e depoimentos, o documentário torna possível, num mesmo espaço discursivo, a coexistência de vozes e gestos não consensuais - e até mesmo antagônicos, bem como de tempos narrativos diferenciados, realizando, através da tensão discursiva, um mapeamento micropolítico de vozes heterogêneas. A partir desse novo jogo de forças propiciado pelo documentário, e na esteira do que propõe Jean Comolli (2004, p. 11), cabe questionar: Quem fala? Quem age? A partir de qual história? De acordo com quais relações de força? Em qual posição ou suposição de poder?”. Longe de buscar certezas se as acusações contra os Friedemans seriam justas ou se eles teriam sido vítimas da histeria coletiva de uma América sensacionalista, o documentário mostra a descontinuidade e dispersão da história, fazendo com que um sentimento de impotência tome conta das convicções do espectador. Agamben (1998, p. 65) diz que “a experiência histórica se faz pela imagem, e as imagens são elas mesmas carregadas de história”. Ele também sustenta que a matéria-prima da história não são os fatos, mas a memória. Como a falta, o lapso, o equívoco são constituintes da memória abre-se, aí, a possibilidade de reinventar a história, torná-la novamente possível. Segundo Brasil (2007), é essa diferença no interior da repetição que faz da história algo político. No entremeio entre o que se passou e o que poderia ter se passado é que a política se torna possível. A política nasce, então, de um jogo entre visibilidade e invisibilidade pública, entre o que é percebido ou não, entre o que faz parte da cena ou dela está excluído, entre a ordem estabelecida e o que lhe escapa. Assim, através de fragmentos de memória registrados em suportes audiovisual distintos, Na captura dos Friedmans não nos cansa de lembrar um variável e inconstante pode ser no interior de um isso foi e, por outro lado, acusa uma permanência inerte e constante do isso foi no interior do pode ser. A partir da afirmação de Foucault (2003, p.10) de que o discurso “não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”, podemos pressupor que as filmagens caseiras realizadas por David das reuniões familiares ocorridas durante o processo investigativo no qual o pai e o irmão caçula estavam envolvidos configuram-se como o desejo de um dia poder trazer à tona uma outra versão dos fatos, um ato de resistência ao sentido dominante. De fato, à época das investigações David ainda era um porta-voz sem voz (mas já um porta-voz), ao registrar as discussões, os desentendimentos, as acusações, a desintegração da família, enfim, tudo o que se passava na esfera íntima de sua casa durante o julgamento de Arnold e Jesse, ele transmite o desejo de que seu discurso fosse percebido como discurso. Ao final podemos afirmar que, a partir da contraposição entre o mundo da informação-espetáculo da mídia e as experiências-memória relatadas em Na captura dos Friedmans, vem à tona, por um lado, uma verdade dos fatos que passou a ser construída por meio de pressuposições e, por outro, um movimento que longe de querer apreender o real arrisca-se nele e com ele. |
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Bibliografia | AGAMBEN, Giorgio. Image et Mémoire. Paris: Ed. Hoebeke, 1998.
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