ISBN: 978-85-63552-05-1
Título | A vida anônima e o dano da política |
|
Autor | César Geraldo Guimarães |
|
Resumo Expandido | A representação do outro de classe no domínio das imagens documentais surge comumente aprisionada na relação sujeito-objeto. Sem desconhecer os diversos problemas implicados nessa representação do outro, a começar pelas diferenças que se interpõem entre quem realiza a imagem e quem é nela é figurado, interessa-nos discutir nesse seminário menos a aparição de um "sujeito popular" do que a presença de uma forma-de-vida, a vida humana "dans laquelle tous les modes, les actes et les processus du vivre ne sont jamais simplement des faits, mais toujours et avant tout des possibilites de vie, toujours et avant tout des puissances", como escreve Giorgio Agamben.1 Sob esse prisma, a denominação "popular" pode muito bem funcionar como uma identidade concedida de fora, outorgada por aquele que não consegue perceber, no mundo do outro, tudo aquilo que concerne à potência, e que nele identifica somente o que recai sobre a rubrica do representado, o resultado da operação da representação, o fato, o condicionado, o estado cristalizado e acabado.
Reduzido à situação de objeto, o outro de classe pode receber várias designações, mas todas elas recobrem uma identidade forjada em um processo conflituoso, que pode ter lugar tanto em uma arena, propícia para o confronto aberto, quanto em uma negociação mais ou menos desarmada. Relembremos a cena fundamental que constitui a política. Seja qual for o termo utilizado para designar o outro de classe ("população de baixa renda", "favelado", "pobre", "marginalizado", "excluído"), ele indicará sempre o pertencimento desse sujeito àquela "parcela dos sem parcela" – no dizer de Jacques Rancière – os que só tem a qualidade de nada terem de próprio (enquanto a oligarquia detém a riqueza e os aristocratas a virtude), e que um dia recebeu o nome de povo (demos), na Grécia antiga.2 No campo do cinema documentário, se um dos problemas mais incômodos é a "má consciência" do realizador (pertencente à classe dos que têm títulos) ao filmar aqueles que pertencem à classe dos não-contados, dos despossuídos de toda ordem, a esperança de resolvê-lo ou superá-lo não deve residir simplesmente na possibilidade do outro filmado vir a assumir uma voz própria que traduziria um ethos coletivo. Pelo contrário, afirma Rancière: um processo de subjetivação só pode ocorrer se surge uma tomada de palavra na qual o sujeito se arranca do lugar dos não-contados, de todos aqueles que só tem a phoné e passa a participar do sensível sob uma outra modalidade, a do logos. 3 No campo dos estudos sobre o documentário brasileiro, Jean-Claude Bernadet traçou com muita precisão o percurso da evolução da representação do outro de classe, no período que vai de 1960 a 1980. Nesse arco de vinte anos, o outro filmado deslocou-se da condição de objeto de um saber exterior à sua experiência, encarregado de ditar-lhe a sua verdade (sob a égide predominante da sociologia), para assumir-se como sujeito do discurso, dono de uma auto-mis en scène que lhe permite dramatizar a singularidade da sua relação com o mundo, agora irredutível às explicações generalizantes. No entanto, essa mudança de foco que põe o acento no ponto de vista particular dos marginalizados e expropriados - cuidadosa em não fazer do discurso do filme o agente de uma segunda expropriação - não eliminou as tensões constitutivas da relação entre o cineasta e aqueles a quem ele filma, modulada por graus diversos de alteridade e sustentada por uma gama de diferenças (de classe, de gênero, étnicas, culturais). Nesta apresentação, buscaremos abordar alguns aspectos da manifestação desse problema em três documentários, de estilos bem distintos: Santo forte (Eduardo Coutinho), Santa Cruz (João Moreira Salles) e Moro na Tiradentes (Henri Gervaiseau e Cláudia Mesquita). |
|
Bibliografia | AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Lisboa: Editorial Presença, 1993.
|