ISBN: 978-85-63552-05-1
Título | O filme como documento e a cena do tribunal |
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Autor | Andrea França Martins |
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Resumo Expandido | Parto de um pressuposto que é quase um lugar-comum: não há um estatuto ontológico seguro do documento, como mostrou o campo da história e da historiografia, de modo que ele aparece como uma noção flutuante, sem identidade, em suspenso. Os modos através dos quais escutamos e olhamos sons e imagens de arquivo, registros de um tempo passado, têm um caráter histórico. No campo das imagens do cinema, quando pensamos as múltiplas modalidades da prática documental, por exemplo, fica evidente que estas modalidades têm relação estreita com a própria cultura histórica do “documento”, dobrando-se aos hábitos culturais de seu tempo e de seu contexto, sendo cada uma tributária de um “tempo documental” que lhe é específico. Mas não é simplesmente no nível das diferentes temporalidades que podemos distinguir e precisar a noção de documento. Mais do que a matéria onde estaria impressa alguma verdade do passado que poderia ser apreendida através da interpretação do pesquisador, o documento assume uma outra função, próxima ao que se propõe Georges Didi-Huberman quando investiga as quatro fotografias tiradas clandestinamente em Auschwitz. O documento, em última instância, deve mobilizar um desejo de equacionar os inúmeros elos perdidos da cadeia dos fatos. Dentro dos propósitos desta comunicação, gostaria de analisar os modos pelos quais as imagens que vêm com “carimbo do real” (seja do cinema documental, do cinema ficcional, das câmeras digitais amadoras quando se tornam peças fundamentais em um processo) acionam a consciência histórica da nossa condição de espectador, como elas ativam esta condição e por quê. Minha hipótese é que concernem à nossa competência de espectadores para estimar o lugar exato de tal ou tal imagem dentro da “economia global de informações”; concernem ainda à nossa habilidade para determinar como um conteúdo documental pode servir ainda hoje para fazer obra de arte, seja no cinema, nas artes plásticas, na arte contemporânea. Minha proposta aqui é discutir dois momentos históricos do recurso à parada da imagem animada, usada como peça de acusação ou de defesa, dentro da cena do tribunal. No filme Fury (1936), de Fritz Lang, onde a projeção das imagens que mostram uma cena de linchamento recorre às múltiplas paradas sobre a ação, vários congelamentos, de modo a confirmar a concepção corrente naquele momento de que a imagem se orientaria, em última instância, para o real por conta de sua “base fotográfica”, base esta que lhe permitiria converter-se em testemunho e documento. Em sintonia, ou melhor, antecipando as teorias realistas do cinema, o pequeno filme projetado na cena do tribunal de FURY revela a concepção de que a imagem tem como função registrar o que se encontra frente à câmara para poder atingir a “redenção da realidade física” (Kracauer). O segundo momento histórico do recurso à parada da imagem animada, usada como peça de acusação dentro de um processo jurídico, é no caso do motorista negro, Rodney King, espancado em abril de 1992 por quatro policiais brancos da Polícia da Califórnia. O espancamento tinha sido gravado em vídeo por um cinegrafista amador e a fita era, a princípio, a principal peça de acusação. Durante o julgamento, no entanto, o recurso da defesa à parada recorrente da imagem acabou por convencer os jurados que foram os movimentos iniciais do motorista que causaram o espancamento. Trata-se de um processo jurídico que foi pioneiro em demonstrar toda uma mudança no regime de visualidade, nos modos de cognição e nas operações de poder e saber postas em jogo. O foco do processo não era mais o punctum barthesiano (a idéia de um real inapreensível, aquilo que não se consegue nomear e que permanece presente na imagem, a mãe com o bebê em meio à turba assassina no filme dentro do filme de Lang), mas questões de como ler a imagem, ou melhor, como produzir efeitos de leitura em detrimento da integridade temporal e espacial do movimento. |
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Bibliografia | COMOLLI, Jean-Louis. Voir et pouvoir. Paris: Éditions Verdier, 2004. CRARY, Jonathan. Suspensions of Perception – Attention, Spectacle and Modern Culture. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 2000
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