ISBN: 978-85-63552-06-8
Título | Personagens invisíveis ao meio dia |
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Autor | Anita Leandro |
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Resumo Expandido | Dizer que a visibilidade tornou-se algo perigoso no mundo de hoje é quase uma tautologia. A partir do momento em que ela responde a exigências ideológicas de vigilância, a visibilidade torna-se o perigo por excelência e, nesse novo contexto, a clandestinidade, a invisibilidade, reaparecem como tática de resistência no espaço das lutas sociais. Na França, ações de coletivos sem endereço, sem dirigentes ou filiados, como o Partido Imaginário e o Comitê Invisível, desorientam a polícia política, que não sabe mais ao certo quem reprimir. O invisível, o indizível, que tanto buscaram cineastas como Bresson ou Dreyer, irrompe no cinema contemporâneo como contraponto estético aos riscos atuais de uma visibilidade excessiva, através de encenações inventivas que protegem as pessoas filmadas.
No início de Mysterious Object at Noon (2000), o cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul pede a uma mulher que lhe conte uma história. Ela procede, então, ao relato trágico de um episódio de sua infância, quando fôra vendida a um tio, pelos próprios pais, sem dinheiro, em troca de duas passagens de ônibus para voltarem pra casa. Fora de campo, o cineasta pergunta-lhe, hesitante, se ela não teria uma outra história para contar, uma ficção, por exemplo. A mulher, seguramente habituada à televisão, que força o entrevistado a contar suas misérias e a chorar diante das câmeras, estranha o pedido, mas enxuga as lágrimas e começa a contar um caso totalmente inventado que dá início ao filme. Esse prólogo diz muito sobre a arte da entrevista e sobre a responsabilidade do cinema em relação ao entrevistado. Não basta que alguém queira testemunhar e que seu testemunho seja necessário. É preciso, ainda, que a filmagem resista ao dispositivo da entrevista, colocando o entrevistado ao abrigo de seu próprio discurso, que é também um discurso de poder. Trata-se de oferecer àquele que fala a oportunidade de exercer o direito de não ter nada a dizer, a "suavidade de não ter nada a dizer" de que fala Deleuze em Pourparlers. Essa comunicação avalia o alcance político de estratégias dessa natureza no cinema contemporâneo. Como diz André Labarthe, o retrato filmado de alguém não é uma "carteira de identidade", mas a curva de uma emoção, ou seja, uma sensibilidade que circula e que, por isso mesmo, extrapola a relação entrevistador-entrevistado, incluindo o espectador na conversa. Esse terceiro, quase nunca contemplado pela encenação, é, na verdade, a possibilidade infinita de interlocução que existe fora do filme. A mesma tese atravessa as mais de seiscentas páginas que Blanchot consagrou à entrevista como forma literária e das quais Foucault tirou inspiração para um importante texto sobre o controle da fala, intitulado, exatamente O Pensamento do exterior. Destituído do poder de dizer Eu e projetado para fora de si mesmo, como acontece com o personagem de Weerasethakul, o entrevistado se confunde com a própria inexistência "no vazio da qual a linguagem pode continuar se expandindo, sem trégua, indefinidamente" (Foucault, 1994). O cinema que se depara com os riscos do discurso teria, aqui, a chance única de praticar uma escuta "não tanto daquele que se pronuncia em seu interior, quanto do vazio que circula entre suas palavras, do murmúrio que o está continuamente desfazendo" (Foucault, 1990). Se Weerasethakul recusa o relato lacrimoso da história de vida de seu personagem, sob pena de perdê-lo, é porquê ele aceita a entrevista como uma narrativa lacunar, irredutível à informação mas também ao Eu mitológico (o herói) e ao Eu psicossomático (a vítima). Entre real e ficção, o cineasta tailandês vai buscar o discurso em seu puro acontecimento: um personagem em preto e branco, sem nome, sem texto, narrador misterioso e, por um triz, invisível, sob o sol da Tailândia. É o bastante para resistir à balburdia, ao excesso de imagens e tantas outras manifestações de desprezo pela palavra e de maltrato do entrevistado, que o dispositivo da entrevista naturalizou. |
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Bibliografia | Agamben, Giorgio. Ce qui reste d'Auschwitz. Paris: Payot-Rivages, 2003.
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