ISBN: 978-85-63552-06-8
Título | A montagem em Pacific: no limiar do dissenso |
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Autor | André Guimarães Brasil |
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Resumo Expandido | O cruzeiro Paficic promete sete dias de belas paisagens, bebidas à vontade e muito, muito entretenimento para os turistas. Destino final: o paraíso de Fernando de Noronha, onde eles passam o dia, antes de voltar ao navio para a festa de Ano Novo. Durante o percurso, as câmeras fotográficas e de vídeo não param de funcionar: cada olhar extasiado, cada interjeição de felicidade, cada passo de dança e cada gole de chope, tudo é registrado como garantia de que a experiência está, de fato, acontecendo. Por um lado, temos, então, a intensificação de uma “ética do ver” – iniciada com a fotografia – baseada na persuasão de que “o tempo consiste em eventos interessantes, eventos dignos de ser fotografados” (Sontag, 2004). Por outro, percebemos que, nesse caso, a imagem consiste não apenas no registro – a representação – de uma experiência, mas se torna o seu lugar: como se a viagem só existisse se tornada imagem e como se os sujeitos da experiência se subjetivassem – não antes – mas no momento da tomada. Trata-se de uma versão “bombada” da subjetividade (“version musclée”, segundo Alain Ehrenberg, 1991), que se constitui na performance e na exposição de si.
Curioso quanto a estas imagens, Marcelo Pedroso, diretor de Pacific (2009), pediu aos turistas o material captado por eles próprios para compor seu filme. Ao contrário da expectativa negativa, vários cederam as imagens, permitindo a Pedroso uma investigação imanente do universo da classe média, cujo lazer – as planejadas e parceladas férias em um cruzeiro marítimo – é uma espécie de continuidade do trabalho: ali, o entretenimento é obrigatório; a ordem do dia, um roteiro a ser seguido à risca; o descanso, um ato de insubordinação. Na esteira do que nos sugere Vladimir Safatle, diríamos que se trata da “aproximação do ideal de trabalho com um certo ideal de gozo em operação no mundo do consumo” (Safatle, 2008). Se os turistas viajam enquanto se expõem para as câmeras portáteis, a vida se performa na imagem e se transforma, logo, em um amontoado de arquivos pessoais: estes têm sua morte anunciada – o fundo empoeirado das estantes e dos armários – negada pela montagem do diretor. Por meio de um trabalho atento à riqueza do material bruto, Marcelo Pedroso nos faz acompanhar o cruzeiro, em uma espécie de etnografia (ou de arqueologia), na qual evita o excessivo distanciamento crítico, sem, contudo, aderir imediatamente ao mundo que aborda. Pouco a pouco, a viagem revela suas nuances, os afetos que, para além da aeróbica diária, resistem e se inscrevem, vez ou outra, nos corpos e nos rostos dos personagens. A nós, Pacific interessa por duas razões: a primeira, por esse caráter performativo das imagens, ou seja, aquilo que nelas abriga formas de vida que se experienciam enquanto se filmam e se expõem. A segunda, por sua dimensão de arquivo reinventada pela montagem. No filme, o procedimento de montagem vai além da pura aglomeração de fragmentos, sem, contudo, almejar a síntese: ao espectador, oferece uma espécie de “conhecimento estético” que nos faz conceber o real como alteração. (Didi-Huberman, 2000) O retorno aos arquivos da viagem e sua recriação permitem ao diretor derivar pelos afetos, raros e difíceis, de uma utopia breve: os olhares, os gestos, as entonações que, nesta experiência de felicidade compulsória, deixam escapar certa exaustão, alguma solidão, alguma melancolia. Estas aparecem nas imagens no limite do desaparecimento, reveladas, em um relance, nesse momento em que o passado – os arquivos – e o futuro – a montagem – “visam um ao outro” (Lissovsky, 2004). Há nesses afetos “inadequados”, o princípio de um dissenso que se insinua em meio à estridência dos alto-falantes. |
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Bibliografia | AGAMBEN, Giorgio. Means Without End. Minneapolis: U. Minnesota, 2000.
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