ISBN: 978-85-63552-06-8
Título | Perto da fome, longe das personagens: Algumas reflexões sobre a ética no documentário Garapa de José Padilha |
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Autor | Maria Celina Ibazeta |
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Resumo Expandido | Garapa (2009) do diretor José Padilha explora a miséria e a fome por que passam três famílias no Ceará. Duas do interior, no Choró e no Sertão, e uma da periferia de Fortaleza. O preto e branco e a qualidade da imagem lembram a estética do filme Vidas secas (1963) de Nelson Pereira dos Santos e passa a sensação de que se está frente a um filme anacrônico. A fome, assunto urgente na agenda social da década de sessenta, deixou de ser um tema de destaque no documentário brasileiro contemporâneo. Desde a década de noventa, a violência urbana e criminalização do outro popular foram os eixos pelos quais se representou a alteridade (Pessoa Ramos, 2008, p. 208).
O documentário de Padilha vai na contramão do imaginário coletivo que, baseado no grande crescimento econômico do Brasil nos últimos anos, sente que o país ainda pode dar certo. A política do atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que há sete anos implementa diferentes programas para atenuar a pobreza e a desigualdade social, é um claro exemplo de que a luta contra a fome é um objetivo central da política oficial. Não é sem motivos, pois, que o filme fecha nos informando que em 2007, 11,5 milhões de recipientes do benefício bolsa-família vivem em situação de insegurança alimentar. De fato, esse é o argumento do filme: expor que o problema ainda não foi resolvido ou está sendo mal resolvido. Ao contrário de muitos dos documentários brasileiros, a entrevista não tem um lugar privilegiado. Impõe-se o modo observativo sobre o modo participativo. Há uma tentativa de intervir na realidade o menos possível: Garapa prescinde de voice over, trilha sonora, legendas, e encenações. Muitas vezes os atores sociais interagem entre si ignorando, ou tentando ignorar, o diretor e sua equipe. A cena se compõe com o cotidiano das personagens. As perguntas, quando as há, são pontuais e muito específicas. O realizador está em busca de informação e se abstém de criar uma relação/conexão com o entrevistado. Não assistimos a um encontro ou conversa entre o cineasta e seus personagens, como nos acostumou o cinema de Eduardo Coutinho. Padilha oferece poucas chances para que seus entrevistados construam o seu auto-retrato através de sua fala. A pergunta que orienta a reflexão sobre a ética no documentário é a que Bill Nichols se faz ao falar deste tema: como devemos tratar as pessoas que filmamos? Duas pesquisas apontam a questões importantes sobre a relação cineasta-pessoas filmadas: o poder envolvido na situação de filmagem e os ambíguos e flexíveis limites entre o ético e o anti-ético. Marcius Freire desenvolveu a primeira: “trata-se de uma relação de subordinação em que o observado se submete ao sistema de representação do observador; em que aquele não dispõe da possibilidade de intervir no processo de observação e por ele é subjugado” (Freire, 2009, p.194). Dora Morão utiliza as palavras da documentarista russa Marina Goldovskaya para problematizar a definição de ética como “uma questão de consciência pessoal” em que cada um determina o que é aceitável (Morão, 2009, p.218). Garapa evita um olhar paternalista do tema da fome e não trata as pessoas filmadas como vítimas. Mas em diversos momentos o filme constrange. O público experimenta resistência ao que vê. Será que tudo pode ser mostrado? Este trabalho explora a dimensão do aceitável e do não aceitável na performance do cineasta e nas imagens escolhidas por ele para construir a realidade representada. A interação entre diretor/personagem e câmera/realidade está no foco da discussão a fim de estabelecer critérios sobre o qué é ético na prática documentária. |
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Bibliografia | BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
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