ISBN: 978-85-63552-06-8
Título | Personnes |
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Autor | Danusa Depes Portas |
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Resumo Expandido | Quando parece que “está tudo dominado”, como diz o rap brasileiro, no extremo da linha se insinua uma reviravolta: aquilo que parecia submetido, controlado, dominado, isto é, “a vida”, revela no processo mesmo de expropriação, sua potência indomável.
É preciso começar pelo mais extremo. O biopoder produz sobreviventes. Fiquemos pois, por ora, nesse postulado que Giorgio Agamben encontra no biopoder: reduzir o homem a essa dimensão residual. O contexto contemporâneo reduz as formas de vida à vida nua, desde o que se faz com os prisioneiros da Al Qaeda na base de Guantánamo, ou com a resistência na Palestina, ou com os detentos nos presídios do Brasil, passando pela excitação anestésica em massa a que somos submetidos cotidianamente, reduzidos que somos a manso gado cibernético, cyberzumbis. Diante da redução biopolítica das formas de vida à vida nua, abre-se um leque de desafios dos quais um dos mais importantes poderia ser formulado da seguinte forma: como extrair da vida nua formas de vida quando a própria forma se desfez, e como fazê-lo sem revigorar formas prontas, que são o instrumento de redução à vida nua? No contexto do capitalismo cultural, que expropria e revende modos de vida, não haveria uma tendência crescente, por parte dos chamados os excluídos, em usar a própria vida, na sua precariedade de subsistência, como vetor de auto valorização? Quando um grupo de presidiários compõe e grava “seu” filme ( penso nos auto-retratos na proposta de Paulo Sacramento), o que eles mostram e vendem não é “seu” filme, nem só suas histórias de vida escabrosas, mas seu estilo, sua singularidade, sua percepção, sua revolta, sua causticidade, sua maneira de vestir, de “morar” na prisão, de gesticular, de protestar, de rebelar-se _ em suma, sua vida. Seu único capital sendo sua vida, no seu estado extremo de sobrevida e resistência, é disso que fizeram um vetor de existencialização, é essa vida que eles capitalizam e que assim se autorizou a produzir valor. É claro que num regime de entropia cultural essa “mercadoria” interessa, pela sua estranheza, aspereza, viceralidade, ainda que facilmente também possa ser transformada em novo exotismo étnico de consumo descartável. Não é do experimento de Sacramento que esse trabalho objetiva tratar, mas de um filme documental exibido no Festival do Rio 2007: Retrato mal falado. Trata-se da montagem e do registro feito por jovens de diversas comunidades do Rio de Janeiro em sua visita e experiência à instalação Retrato falado no Foto-Rio 2007. O dispositivo propunha a construção de auto-retratos fazendo uso de um software da polícia na construção de retrato falado. Retrato mal falado desenvolve uma alegoria do lugar da imagem fotográfica no espaço social. Lida com a história saturada de fotografia que perde substância simbólica e se torna meramente índice de opacidade. Evidencia ainda que o esquecimento social é projeção de um recalque, da impossibilidade de lembrar. A amnésia social, embutida na ideologia ou deliberadamente provocada, alimenta-se da própria fotografia, na perversão de sua função de memória visual para então produzir recalcamento. Na amnésia social o próprio sujeito é apagado pela ideologia e outras práticas do poder. A amnésia reforça aquela perda do possível caráter analógico da fotografia com a realidade. Ao propor uma nova ordem, Retrato mal falado se apresenta como um enfrentamento e uma subversão dessa lógica perversa. No âmbito desses gritos a favor das subjetividades que resistem situa-se uma vontade teórica que, assumindo-se como uma pequena cartografia afetiva, não mais pretende reduzir a complexidade de seus objetos através da ênfase sobre o sentido; ao contrário, assume, contentada, a tarefa de catalisar essa complexidade constitutiva dos dispositivos em jogo na atualidade como gestos de uma pré-crítica, como experimentos do pensamento, como pequena cartografia de gestos afetivos.Retomo Agamben para quem o fundamento do cinema é menos a imagem do que o gesto. |
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Bibliografia | AGAMBEN, G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed UFMG, 2004
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