ISBN: 978-85-63552-06-8
Título | Nos Contornos do Vazio: o espaço em presença de “Gerry” e os cinemas d |
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Autor | Fernando de Mendonça |
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Resumo Expandido | O deserto, região natural de difícil acesso para o habitat humano, ao contrário do senso comum, revela-se como um lugar de intenso movimento, principalmente quando é formado por solos arenosos. A incessante ação eólica sobre a areia faz com que o relevo desértico seja perpetuamente renovado, gerando formações diversas a todo instante, incidindo até mesmo sobre as mais resistentes rochas, ecoando o princípio heraclitiano da água num lugar onde a mesma é raridade.
Cenário de narrativas das mais diversas no decorrer da história, o deserto se destaca como um lugar marcado pelo vazio, ou seja, um não-lugar, uma não-geografia, uma quase-fronteira adequada à reflexão e subjetividade, como se ela mesma se debruçasse ao pensamento. É inevitável que pelo seu potencial significativo o cenário torne-se personagem da narrativa e influencie diretamente as questões levantadas na diegese em que impera, assim, o deserto surge como um elemento espacial híbrido por excelência, possibilitando representações pautadas pelo rompimento da identidade, individual ou coletiva. O cinema, em pouco mais de um século, já conta com um painel particular de obras que manifestam o deserto mais do que como um lugar, atribuindo-lhe um caráter narrativo-formal que identifica a paisagem não apenas em suas possibilidades metafísicas, mas encontrando nele uma analogia para a própria constituição da linguagem cinematográfica. A imagem de cinema, formada por grãos em movimento, torna-se o lugar da apreensão do mundo, o espaço vazio a ser completado por uma realidade que é sempre nova e que ele mesmo ajuda a renovar. Não há imagem fixa. Todo e qualquer fragmento fílmico é dotado de uma dinamicidade interna que articula sua ontologia do vazio, lugar onde nada mais há do que a luz e a sombra, para originar um novo mundo em permanente transformação. Pois uma imagem nunca é a mesma em si. O tempo e o espaço cinematográficos, agora desvinculados do exterior que os gerou, configuram a imagem como um lugar de origem, como se a terra que formou o homem, agora encontrasse o lugar ideal da criação. É quando a imagem se torna areia. “Gerry” (Gus Van Sant, 2002), filme fundamento desse novo século de renovadas perspectivas espácio-temporais, culmina em nossa proposta como um ponto estético central para o diálogo Cinema X Deserto. Assim como a formação de uma duna deriva da degradação de outras, acumulando grãos que se desgarraram de sua origem rochosa, “Gerry” impõe-se pelo estranhamento que assume em suas inspirações, sem jamais deixar de evidenciar uma originalidade fugidia, de aparência tão frágil, quase prestes a se espalhar com o vento, mas que não se desvincula da certeza da permanência, pois por mais que vente e a paisagem se transforme, um deserto não deixa de ser o que é. Com este filme, Van Sant deu a ver o potencial que a imagem de cinema possui de perceber e apreender a paisagem natural, neutralizando inclinações culturais, suspendendo o espaço e trilhando caminhos abertos por alguns dos mais importantes cinemas que o século XX legou. A partir dele traçaremos uma linha lógica do desenvolvimento temático/formal comum a cineastas específicos de diversas épocas e lugares (irmãos Lumière, Victor Sjöström, Michelangelo Antonioni, Hiroshi Teshigahara, Béla Tarr), percebendo como a natureza desértica, pela suspensão espacial de um não-lugar, abre caminho para uma redefinição nos contornos da linguagem audiovisual. Tal reflexão exigirá uma perspectiva ampla de análise, possibilitando o encontro de conceitos sedimentados desde os pré-cinemas até enunciados contemporâneos em processo de teorização, como a, por muitos celebrada, ‘estética do fluxo’. Assim como a areia torna a região desértica sempre nova e movediça, nossa proposta, que ora concentra-se apenas num filme como se formasse dunas e ora escorre em notas de outros cinemas desérticos como por uma fina ampulheta, é poder pela reflexão sentir na pele a aridez da imagem, a impressão imediata que não deixa deter os sentidos. |
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Bibliografia | ALLAN, M. Deserted Stories: the Lumière brothers, the pyramids and early film form, Early Popular Visual Culture, Berkeley, v.6, issue 2, July 2008, p. 159-170.
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