ISBN: 978-85-63552-06-8
Título | Políticas da memória e as imagens-transe em Rocha que voa |
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Autor | Patricia Furtado Mendes Machado |
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Resumo Expandido | Quando faz um filme sobre seu pai, o cineasta Glauber Rocha, Eryk Rocha não se preocupa em explorar as memórias íntimas e/ou domésticas desta relação filial. Rocha que voa, ao contrário, se concentra no curto período de exílio de Glauber em Cuba, em consequência da ditadura militar brasileira, e na memória do cinema latino-americano das décadas de 60/70. Para tanto, recorre a arquivos cinematográficos assim como aos testemunhos dos cineastas que viveram a época.
Estão em jogo no documentário modos de esquecer e de lembrar, uma memória que aprisiona e que liberta. O gesto do cineasta de não tentar dar conta da totalidade do passado, de toda obra de Glauber, se aproxima a proposta de Nietzsche de uma “memória da vontade”, que recria o passado e aponta para o futuro. Trata-se de um “querer” lembrar em vez de uma necessidade de “não esquecer”. O esquecimento, nesse caso, é uma “força plástica” que cura feridas, restabelece o perdido e reconstitui “por si mesma as formas partidas” (1998:10). A opção de Eryk então é selecionar arquivos de filmes latino-americanos e intervir sobre eles na montagem. Esses gestos de intervenção (como colorir imagens, congelá-las, repeti-las, alterar sua velocidade, sobrepor planos, acrescentar várias camadas de sons a uma mesma cena) foram fundamentais tanto para evocar as políticas da memória presentes no filme, quanto para multiplicar os sentidos produzidos pelos arquivos (Didi-Huberman, 2009). Quando adota o procedimento de remontar imagens de arquivo, Eryk se filia a uma tradição de documentaristas que procuraram dar novos sentidos para imagens que, num primeiro momento, poderiam ser entendidas como provas incontestáveis de uma realidade (Esther Shub, Vertov, Mekas, Maker, Santiago Alvarez). São exploradas no documentário imagens em que personagens anônimos executam trabalhos braçais e mecanizados. Fragmentos de Viramundo, de Geraldo Sarno são relacionados a imagens de operários cubanos filmadas por Eryk. São registros que demonstram a força da serialização dos gestos, do automatismo na rotina de trabalhadores oprimidos, que suscitam o conceito de memória-hábito bergsoniana . Trata-se de uma memória que torna possível, a partir do que é percebido, a repetição de esquemas sensório-motores que já foram executados, e nos permite agir mecanicamente no presente. Benjamin nos ajuda a localizar historicamente essa memória atemporal quando analisa os trabalhos nas linhas de montagem das indústrias modernas: “no trato com a máquina, os operários aprendem a coordenar seu próprio movimento ao movimento uniforme, constante, de um autônomo” (1989:125). Na passagem dessas imagens para as de rituais religiosos e místicos, os corpos se desvencilham das amarras do automatismo e se movimentam de maneira descontrolada, se convulsionam em transe (como em Glauber e Rouch). A cena de um ritual de santeria, filmada com película vencida, é repetida sete vezes ao longo do filme. Em cada uma delas é trabalhada de maneira diferente na montagem. É o que chamamos de imagem-transe, aquela que rompe com os esquemas sensório-motores através da potencialização da memória. Segundo Bergson, a memória “aguarda simplesmente que uma fissura se manifeste entre a impressão atual e o movimento concomitante para fazer passar aí suas imagens” (1990:107). Nessas fissuras abertas na montagem e na sobreposição de camadas de imagens e sons, Rocha que voa rompe com uma narrativa organizada racional e linearmente, e celebra o transe latino-americano como força que impulsiona os corpos a se desgarrarem do automatismo. Através das disjunções, tanto das imagens na relação que estabelecem com o que está sendo falado, quanto na organização dos arquivos audiovisuais em relação ao que está sendo produzido, o filme se aproxima esteticamente dos sonhos e do imaginário. A partir das relações entre imagens e sons sobrepostas e fragmentadas, o porvir é a aposta no futuro de uma América Latina que não foi possível, mas que pode ser recriada no filme. |
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Bibliografia | BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasilense, 1989
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