ISBN: 978-85-63552-06-8
Título | Tudo que não se inventa é falso: documentário e estética da fabulação |
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Autor | Mariana Duccini Junqueira da Silva |
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Resumo Expandido | À luz das formulações de Comolli (2008), tensionam-se a condição e a possibilidade de existência do documentário. Em lugar de um ajustamento do mundo – com fins de repetição de um repertório socialmente reconhecido e, sobretudo, administrável –, essa modalidade fílmica traria uma especificidade irredutível: aquela de emergir “sob o risco do real”(2008, p.169). Em uma dinâmica em que as condições da experiência fazem rearticular a própria experiência, o documentário, para além da representação “imediata” do mundo, é ultrapassado pelo mundo.
A tal posicionamento corresponde a impossibilidade de se pensar na prática documentária como fiadora da captação-transmissão de um universo totalizante. Aberto à imprevisibilidade, esse discurso fílmico, ainda que proponha uma unidade de sentido, é particularmente polissêmico: avesso ao determinismo das roteirizações – no que nelas tende às representações unívocas –, pode, então, se ocupar daquilo que escapa. Em outros termos, ainda com Comolli (2008, p.172), apreendemos que, na prática documentária, o fora de campo, antes de aludir a uma contigüidade imagética inferível por quem observa, relaciona-se de maneira estreita com o fora de cálculo. O controle das materialidades discursivas é crivado pela latência do não-controle. Na relação com a alteridade – o outro filmado –, o reconhecimento dessa condição pela instância autoral impele-a a uma prática em que a categorização e a normatização dêem lugar à fabulação: emergência que se torna possível na dimensão do encontro, do construto, de uma verdade que tem como garantia o acontecimento fílmico. Com o intuito de analisar essa tensão estruturante no filme documentário, propomos a observação da obra Só dez por cento é mentira (2008), dirigida e roteirizada por Pedro Cezar, como (em termos literais) a “desbiografia oficial” do poeta sulmatogrossense Manoel de Barros. Interessa-nos depreender de que forma a instância autoral se sustenta – e se autoriza – por meio da amplificação de um “ethos Manoel de Barros”, erigido, na construção do personagem biográfico, em nome de uma estética da invenção. Reificando o amorfo, o abstrato e o “resto”, por meio da referencialização mútua das especificidades materiais do cinema (imagem, trilha sonora e recursos de áudio), o filme de Cezar é tributário ao ideal de chamar à cena, por meio do visível, aquilo que apenas se intui, viabilizando uma linguagem que rejeita a transparência. Aqui, a astúcia enunciadora parece inspirada (e imiscuída) na corporalidade dos versos do poeta, desarticulando ostensivamente a convenção, a referencialidade, a roteirização, enfim. Não à toa, o documentário esmera-se na (re)criação de sintagmas que expressam, como princípio poético, tal rebeldia às normas – algo que, em termos léxico-semânticos, é latente na obra de Barros por meio dos prefixos de negação ou em vocábulos prenhes do sentido de contrariedade/contradição (“Poesia é a virtude do inútil”; “Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira”; “Os deslimites da palavra”). Para além da antinormatização, entretanto, o filme torna latente a legitimidade de uma verdade que se inventa – fundamento do ethos do poeta. Dessa maneira, um estar no mundo específico à obra de Barros “impregna” o documentário, como se pode inferir por meio dos depoimentos de personagens que, de maneira anti-referencial, não estão lá para valorar uma obra literária; antes, adensam-se, eles próprios, como desdobramentos desse modo de ser-estar. Em um mundo particular em que a condição de existência só pode ser franqueada pela poesia, a dimensão das vozes que se multiplicam – “o verbo pegando delírio” – seria incompatível com uma prática documentária baseada na referencialidade objetiva. É nesse âmbito, precisamente, que se sustenta o lugar autoral em Só dez por cento é mentira: reconhecendo a necessidade de se inscrever “sob o risco do real” – um real, ressalve-se, que apenas pode se sustentar sob o signo da fabulação. |
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Bibliografia | BARROS, M. O livro das ignorãças. Coleção: Mestres da literatura brasileira e portuguesa. Rio de Janeiro, Record, 1993
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