ISBN: 978-85-63552-06-8
Título | Do processo como fetiche ao êxito do fracasso |
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Autor | Ilana Feldman |
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Resumo Expandido | A indeterminação entre processo e obra, pessoa e personagem, vida e trabalho, autenticidade e encenação, acaso e controle, êxito e fracasso, para citarmos alguns dos pares hoje em voga, tem sido a marca de parte expressiva da produção documental brasileira recente. Nesse contexto de um “fracasso” exitoso ou assegurado, em que poderíamos citar filmes tão singulares quanto sintomáticos, tão solitários quanto solidários – tais como Moscou (Coutinho, 2009), Filmefobia (Goifman, 2009), Esperando Telê (Rewald e Ab’saber, 2009), Pan-cinema permanente (Nader, 2008), Sábado à noite (Araujo, 2008) e Santiago (Salles, 2007) – o documentário, entendido como campo plástico e relacional, quando não é capturado pela otimização do desempenho de seus personagens, parece colocar em cena, como nenhum outro meio, o negativo da “era da performance” em que vivemos. Aberto às contingências, inconstâncias e temporalidades várias, esse campo “menor” pode dar nos a ver, seja no processo ou na estrutura, na filmagem ou na montagem, o fracasso e as impossibilidades inerentes a toda linguagem.
Como tivemos a oportunidade de discutir no XIII SOCINE, por ocasião deste Seminário Temático, se a indeterminação, figura esquiva e ardilosa, pode ser pensada como a condição das mais diversas formas de cinismo e de situações de exceção, para nos filiarmos ao pensamento crítico dos filósofos Vladimir Safatle e Giorgio Agamben, cabe a ela também possibilitar que algumas obras possam operar como nossas contemporâneas, no sentido conferido por Agamben (2008). É na indeterminação de uma temporalidade anacrônica, fissurada e defasada, que alguns filmes podem colocar em relação aquilo que estaria clivado, podem fazer da fratura o lugar de encontro e compromisso entre gerações, podem nos levar a um presente em que jamais estivemos. A contemporaneidade, segundo Agamben, é, portanto, uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este ao mesmo tempo em que dele toma distância. Tomar distância equivaleria, no âmbito do cinema, a adotar uma postura reflexiva, a explicitar seu próprio processo, fazendo dele seja um instável e potente modo de criação seja uma freqüente forma de legitimação e asseveração da narrativa e das imagens – como se o processo assegurasse a verdade e a realidade da obra. Seja como for, tanto o processo criador, fetichizado ou autenticador colocam em cena um tipo de reflexividade que não se confunde com as modernas estratégias antiilusionistas de revelação e desmistificação (pela paródia, pela pedagogia ou pela agressão), quando ainda era possível pensar em termos da clivagem transparência e opacidade. Hoje, tal reflexividade engendra, pela intensificação, outro tipo de narratividade, deveras mais complexa, e outro tipo de “esclarecimento” e “engajamento” do espectador. O processo, entendido então como instância produtiva e como produção coletiva, pré-individual, a partir da qual o filme se inventa enquanto reinventa, intervém e altera mundos, é aquele meio sem fim capaz de colocar em jogo tanto os modos de construção da linguagem quanto os modos de constituição dos sujeitos. Se, de acordo com Foucault, em sua análise da biopolítica, as vidas dos indivíduos escapam continuamente às exaustivas tentativas de dominação e gestão é porque, ao escapar, elas interessam ainda mais aos processuais poderes, que as liberam na mesma medida em que as modulam, que as constrangem na mesma medida em que as estimulam, pois se trata, sempre, de gerir potências e possibilidades. Entretanto, seria possível admitir que os poderes e os processos, sobretudo no âmbito da expressão estética, não apenas gerem possibilidades como também impossibilidades: o erro e o fracasso, este muitas vezes assegurado, nunca foram, no âmbito do documentário, tão investidos e rentabilizados. Tal como um animal vivente destinado a errar e a perpetuamente se defasar, o documentário brasileiro parece ter descoberto o conselho de Samuel Beckett: “Fracasse. Fracasse de novo. Fracasse melhor”. |
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Bibliografia | AGAMBEN, G. Qu’est-ce que le contemporain? Paris: Payot & Rivages, 2008.
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