ISBN: 978-85-63552-07-5
Título | A voz inaudível dos arquivos. Montagem e escrita da História |
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Autor | Anita Leandro |
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Resumo Expandido | Com mais dois outros documentários de arquivo da mesma cineasta — "Processo-Crime 141-53/Enfermeiras no Estado Novo" (2000) e "48" (2009) — "Natureza morta" compõe um tríptico sobre a ditadura Salazar. Além do tema, os três filmes compartilham um mesmo corpus de imagens estáticas, os retratos de identificação de presos políticos produzidos pela polícia portuguesa entre 1926 e 1974. A montagem trabalha esses documentos de forma a aproximar passado e presente, reservando ao silêncio um lugar preponderante.
Embora tudo pareça ser dito, em "Natureza Morta" não há palavras. O filme é inteiramente construído com retratos de presos e imagens de cine-jornais e reportagens. Com um slow-motion acentuado, à maneira de Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi, a montagem retem o gesto histórico fugaz que o fluxo contínuo das imagens e dos discursos havia relegado ao esquecimento, no fundo dos arquivos. O fragmento de um plano de Salazar na janela, saudando as massas, sorridente, é suficiente para comunicar seu estilo nazifacista. Em contra-plano, num diálogo mudo com esses vestígios da história, os rostos dos prisioneiros fotografados contemplam, imóveis, o pequeno milagre de uma montagem que, pela simples justaposição dos planos e alteração da velocidade do movimento, traz à superfície das imagens cristais de tempo cheios de sentido. No silêncio e na imobilidade das imagens de "Natureza morta" ressoa, como diria Warburg, o timbre de vozes inaudíveis, as vozes do passado, vozes dos mortos, vozes que ainda ecoam em milhares de documentos decifrados e ainda por decifrar. O silêncio dos arquivos é palavra vivida, mas que ainda não foi escrita. E para torná-lo tangível, a montagem subtrai, em vez de acrescentar, fazendo ouvir, no lugar do discurso da história, do comentário e da entrevista clássica, os balbucios de uma palavra calada. A montagem de "Natureza morta" coloca em evidência o corte historiográfico que Michel de Certeau detectou entre o corpo vivido e o corpus de textos que compõem a história. O tratamento de arquivos em "Natureza morta" põe em prática uma economia de meios tão rigorosa quanto atual. Em suas "Notas sobre o cinematógrafo", Robert Bresson aconselhava muita ascese na criação de um filme: "esteja certo de ter esgotado tudo que se comunica pela imobilidade e pelo silêncio". Ele soube reunir num só plano, silencioso e grave, diferentes indícios da História, permitindo ao espectador entrar na ficção pela porta do documentário. Na abertura de "Um condenado à morte escapou" (1956), uma lápide no muro da prisão de Monluc, em Lyon, informa que sete mil homens morreram ali durante a ocupação alemã. Sete mil mortos retornam nessa única imagem do monumento. A moral do aforismo de Bresson deu o tom exato da relação de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet com os lugares históricos e hoje ressoa fortemente na estética de uma nova geração de ascetas, interessados pela história do tempo presente, como Pedro Costa ou Harun Farocki. A escrita da história pelo documentário demanda, atualmente, uma economia de viés bressoniano, a única ainda capaz de resistir tanto ao excesso de imagens quanto à dificuldade de acesso a elas. Imobilidade e silêncio se confundem, hoje, com as próprias condições de possibilidade da montagem, ou seja, com aquilo que a transcende e que, segundo Agamben, estaria relacionado ao caráter eminentemente histórico da imagem: com sua dupla capacidade de repetir as imagens e de interromper o seu movimento, a montagem assumiria, na prática, o gesto revolucionário do anjo benjaminiano em seu afã de barrar o avanço do progresso para, assim, cuidar da memória. |
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