ISBN: 978-85-63552-07-5
Título | “Eu foco naquilo que me interessa”: o documentário em Naomi Kawase |
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Autor | Camila Vieira da Silva |
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Resumo Expandido | Na filmografia da cineasta japonesa Naomi Kawase, a ausência e a perda são dois elementos centrais da narrativa. O que se observa nas obras de Kawase são experiências de vida, que envolvem uma espécie de aprendizagem dos corpos com a dor inevitável de um acontecimento trágico, sem no entanto sucumbir ao ressentimento ou à culpa. Tal estratégia é ainda mais presente e marcante em seus documentários: filmes caseiros, onde ela mesma lida com o abandono do pai e a iminência da morte da tia-avó, procurando fazer da matéria fílmica o lugar da ausência e da perda.
Por meio de um inventário de imagens filmadas em seu próprio domicílio na bucólica cidade de Nara, os documentários de Kawase absorvem nuances sentimentais de curiosidade, a ponto de querer ver por dentro da imagem, de esquadrinhar uma intimidade, algo semelhante ao que o filósofo Gastón Bachelard pontua em "A Terra e os Devaneios do Repouso". “A partir desta vontade de olhar para o interior das coisas, de olhar o que não se vê, o que não se deve ver, formam-se estranhos devaneios tensos...” (BACHELARD, 1990, p. 7). Com sua pequena Super 8, Kawase registra momentos de sua vida cotidiana que são dignos de ser guardados e, por meio desta coleção de instantes, monta seus filmes domésticos de forma descontínua, como forma de preservar aquilo que é mais caro nas imagens: sua dócil presença. Além do interesse ótico de profundidade – de querer ver aquilo que faz parte do cotidiano –, há, sobretudo, um interesse háptico de superfície – de tatear um rosto, um objeto – a ponto de construir no/com o filme toda uma poética da tatibilidade. Esta sensibilidade háptica ou tátil é claramente percebida em "Katatsumori" (1994), no momento em que Kawase toca o rosto de sua tia-avô, após tê-la observado da janela de sua casa. O ato de acariciar a imagem, de fazer do contato o gesto primordial, sugere a aposta em uma “câmera-pele”, como explica o ensaísta Luis Miranda em "El Cine en El Umbral". Kawase explicita a necessidade de tocar alguém que se ama e, por meio de tal gesto, sustentar uma materialidade que fatalmente se perderia com a morte da tia-avó. A modulação da ausência e da perda também é convocada em "Embracing" (1992). Carregado de sombras e espaços vazios, o filme mostra a busca de Kawase pela figura do pai biológico, que a abandonou quando ainda era criança. Ela visita tanto os lugares em que foi concebida quanto os diversos domicílios de seu pai, endereços obtidos por meio do koseki, um tradicional livro de registro familiar japonês. Enquanto vê-se imagens de paisagens, do céu, de uma xícara de café, do pôr-do-sol visto da janela, ouve-se a gravação do áudio da chamada telefônica que a cineasta faz ao pai. Os filmes caseiros de Kawase recorrem a imagens que não pretendem ser simbólicas, na medida em que o sentido que brota delas permanece em aberto ou em suspensão, convocando a uma incessante exploração presentificada da memória da cineasta. O termo “sentido” aproxima-se da noção oriental de “sabor” (wei). Não se dirige à inteligência, não serve para ser decifrado, mas se dissolve e simplesmente é saboreado. O sentido dos filmes de Naomi Kawase propaga-se discretamente, levando a outras sutilezas mais amplas ainda não percebidas. São como variações rítmicas e suaves melodias que ressoam no corpo do espectador. |
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Bibliografia | BACHELARD, G. A Terra e os Devaneios do Repouso: Ensaio sobre as imagens da intimidade. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
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