ISBN: 978-85-63552-07-5
Título | A calcinha preta e o sutiã da Norminha: moral, humor e trilha novelesca |
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Autor | Felipe Costa Trotta |
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Resumo Expandido | Em 2009, a banda de forró eletrônico Calcinha Preta obteve grande sucesso nacional através de sua veiculação da canção Você não vale nada mas eu gosto de você na trilha sonora da novela Caminho das Índias, exibida pela TV Globo em seu horário nobre. A canção era tema da personagem Norminha, interpretada pela prestigiada atriz Dira Paes, que sistematicamente traía seu marido Abel após oferecer a ele um leite com sonífero. O refrão-título funcionou, durante a trama da novela, como eixo de uma intensa negociação moral com significativa reverberação social em torno das motivações e da índole da personagem. O casal integrava a trama paralela da novela, localizada no bairro “pobre” da Lapa carioca, onde a batida do samba molda sonoramente uma série de estereótipos disseminados sobre o “popular”. Nas telenovelas, o popular funciona como esfera da descontração, do bom humor e da leveza dramática, acionando soluções afetivas que perpassam o cômico e o risível, sem espaço para tensões afetivas ou dramas sentimentais. O curioso é que a sonorização do roteiro instituído do feliz casal foi feita através da energia dançante e sensual do forró eletrônico, o que amplia as narrativas populares no âmbito da narrativa novelesca.
Por outro lado, ainda que amenizada pelo humor, a tensão entre valor e desejo expressa na canção e na trama do casal cimentou um terreno de debates sobre ética sexual, condutas morais e normas de comportamento. Abel, o marido traído, trabalhava no próprio bairro como guarda de trânsito, sendo caracterizado como um profissional correto e zeloso pelo bom cumprimento das regras e das “normas” (a ironia dos nomes dos personagens compõe o quadro permanentemente risível das cenas do “núcleo pobre”). Ao mesmo tempo, sua dedicada e ciumenta esposa mostrava-se verdadeiramente apaixonada e até mesmo feliz com o casamento. Ainda assim, o traía. A canção, por sua vez, estabelecia uma espécie de julgamento moral da conduta de Norminha ao mesmo tempo em que permitia uma simpatia pela personagem, através do humor e da ironia advinda da própria oposição tensiva, do estilo vocal, da sonoridade dançante, do contexto do forró eletrônico matizado no trinômio festa-amor-sexo. Neste trabalho, irei discutir as estratégias musicais de elaboração moral empregadas na canção-tema de Norminha, entendendo que a música opera como vetor de tais negociações e conflitos sociais, fortemente atravessados por prescrições morais nem sempre tão rígidas quanto possam parecer. A música não é elemento reflexivo no processo de significação e compartilhamento simbólico dos produtos audiovisuais, mas participa ativamente de tais processos, conduzindo afetivamente narrativas sensitivas no público e, no caso, nos próprios produtores (atores, diretores, autores). Pretende-se adotar neste ensaio um eixo de análise das conexões entre música e imagem em movimento que busca identificar tensionamentos gerados pela conexão entre ambas a partir da exibição prolongada da telenovela. O leitmotiv de Norminha funciona, nesse caso, como vetor de ações narrativas, agente de negociações morais e possivelmente contribui para o próprio desfecho da trama. Ao final, após um período doloroso de separação, Norminha e Abel se reconciliam e o mesmo roteiro de soníferos e traições volta a acontecer, com o mesmo fundo musical. Com isso, a sentença do refrão – “você não vale nada mas eu gosto de você” – parecia manifestar uma espécie de antevisão (no caso, anteaudição) do final possível reservado ao casal, moldando um conjunto relativamente limitado de possibilidades narrativas em virtude da intensa conexão estabelecida entre a canção e a personagem, entre teledramaturgia e música popular: os principais produtos culturais do país. |
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Bibliografia | Bakhtin, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. Brasília: Hucitec, 1987.
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