ISBN: 978-85-63552-07-5
Título | O estatuto político da amizade |
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Autor | Rafael de Almeida |
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Resumo Expandido | Na esteira de Aristóteles, Agamben nos lembra que a “amizade é a instância desse com-sentimento da existência do amigo no sentimento da existência própria” (AGAMBEN, 2009: 89). De acordo com ele a amizade seria uma espécie de des-subjetivação no cerne da sensação mais pessoal de si, já que não se trata de compreender o amigo como um outro eu, mas um outro do mesmo. Isto é, a percepção dos processos de subjetivação da minha existência seriam com-sentidos pelo amigo, esse outro de mim mesmo que seria perpassado pela sensação que experimento. Dessa maneira, o que há para ser dividido, repartido, compartilhado, no contexto da amizade, vai além de algo em si: passa a ser a própria existência, a vida, divisão que antecede qualquer outra. Trata-se, então, muito menos de com-dividir gostos, afinidades, semelhanças, lugares, trajetórias comuns; do que o ser, o fato de existir por si, em toda sua fragilidade e beleza. Partindo desse pressuposto, acredito que vemos surgir em A Alma do Osso (Cao Guimarães, 2004) uma relação de amizade entre o diretor e o personagem real Dominguinhos da Pedra. O documentário revela a existência aparentemente isolada de um ermitão, de 72 anos, que vive em uma caverna no interior de Minas Gerais. Aliás, menos do que revelar, ele se torna um instrumento de partilha dessa existência. O processo de realização do filme serve como mediador para a instauração desse afeto. Uma série de acontecimentos, factuais, no entanto encravados na vida dos envolvidos, nos leva a crer nisso: a recusa de Dominguinhos a receber um pagamento por sua participação no filme, apesar da insistência de Cao; os presentes oferecidos pelo diretor que, com resistência, são aceitos; o interesse de “comprar os presentes”, ao invés de simplesmente recebê-los, por parte do protagonista; a confiança mútua entre eles sentida, se não com-sentida, pelo espectador durante a projeção; e, por fim, a promessa dos “bens” de Dominguinhos a Cao, quando o eremita morresse. Tudo isso nos remete ao viés político impregnado na noção de amizade proposta por Agamben, pois a existência, enquanto ela mesma e sensação, é já continuamente dividida. “E é essa partilha sem objeto, esse com-sentir originário que constitui a política” (AGAMBEN, 2009: 92). No âmbito da relação documentária que nos propomos a investigar, entendemos que compartilhar denota que os personagens, e aqui consideramos os dois pólos dessa amizade, com-divisão do ser – o que filma e o que é filmado –, “estão lá inteiramente e sem reservas, que dão o que têm e o que não têm, que dão o que sabem que têm e o que sabem que não têm, tanto quanto o que não sabem que têm e o que não sabem que não tem” (COMOLLI, 2008: 155). Penso ser nesse sentido que Cao Guimarães afirma que um “personagem de documentário entrega sua vida para ser retratada na medida de sua confiança por quem a está retratando. Não existem fórmulas, não existem regras. Tudo passa muito mais por talvez uma ternura do olhar do que por um bloco de notas”. Sendo que “esta entrega, esta confiança, esta afetividade se propaga até a montagem e finalização do filme”. Ou seja, é refletida na própria forma do filme, em sua superfície. E considerando a pele do rosto como superfície, suspeito de que Cao Guimarães, ao ter seu rosto diante do de Dominguinhos, não se vê nos olhos dele. Mas, antes de tudo, os atravessa, ao “invés de olhá-los no morno face a face das subjetividades significantes”. Pois reconhece em seu personagem uma tentativa de “escapar ao rosto”, por meio de “devires-animais”, os quais fazem “com que os próprios traços de rostidade se subtraiam enfim à organização do rosto” (DELEUZE; GUATTARI, 1996: 36). Talvez tenha sido esse o encantamento do diretor de A Alma do Osso. Habitar, e se perder, (n)o mundo possível de outrem, ser seu amigo, potencializar o falso de sua(s) existência(s), propor uma “dança a dois”, experimentar sua rostidade, parecia mais sedutor ao olhar imaginário de Cao Guimarães. |
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Bibliografia | AGAMBEN, Giorgio. O amigo. In: O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009. ______. The face. In: Means without end: notes on politics. University of Minnesota, Minneapolis, 2000. AUMONT, Jacques. O olho interminável: cinema e pintura. São Paulo, CosacNaify, 2004. COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007. ______. Michel Tournier e o mundo sem outrem. In: Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2007. ______; GUATTARI, Félix. Ano zero: rostidade. In: Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 3. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1988. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005. SONTAG, Susan. A estética do silêncio. In: A vontade radical: estilos. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. |