ISBN: 978-85-63552-07-5
Título | Identidade em trânsito - Iracema, uma transa amazônica |
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Autor | Antonio Joáo Teixeira |
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Resumo Expandido | A partir da conceituação de identidades híbridas, formulada por Nestor Canclini, em que os processos socioculturais, nos quais estruturas ou práticas discretas, que têm existências separadas, se combinam para gerar estruturas ou práticas novas, esta comunicação pretende discutir as questões da heterogeneidade e da hibridização cultural no filme Iracema, uma transa amazônica, de Jorge Bodansky e Orlando Senna (1976). Os conceitos de identidade e diferença, que também serão levados em conta na análise, devem ser problematizados, pois podem levar a noções de pureza, de univocidade. Já o conceito de hibridismo, que não é estranho ao dialogismo bakhtiniano, devido a suas características de disseminação, “contaminação” e sincretismo, servirá de guia para o estudo da personagem Iracema – a errante contraparte da Iracema literária –, uma prostituta de quinze anos que é abusada pelas pessoas que cruzam seu caminho. Sua trajetória ficcional se desenvolve paralelamente a sequências que documentam a existência de sujeitos que vivem às margens da rodovia transamazônica – gigantesco projeto desenvolvido durante os mais duros anos do regime militar brasileiro. Um empreendimento que pretendia integrar partes isoladas do país se revelou inviável e trouxe miséria aos já miseráveis camponeses.
Iracema, perdida entre dois mundos, parece estar sempre à margem dos acontecimentos, para o que contribuem as “entrevistas” – algumas improvisadas – que o personagem Tião Brasil Grande faz com habitantes da região, e que parecem alienar a personagem Iracema, que não é totalmente marginalizada graças à grande quantidade de closes que o filme dedica a ela, em contraste com os planos médios e gerais em que os outros personagens aparecem. E quem é essa Iracema adolescente, que nega ser índia, deslumbrada com a procissão do Círio de Nazaré e com a cidade, sensual em seu vestido laranja, desinibida quando fuma e pega carona com o caminhoneiro Tião? Filme ficcional, com um aspecto de filme experimental, originalmente filmado em 16 mm, com cenas que enganosamente parecem mal editadas e iluminadas, Iracema, uma transa amazônica tem um sentido de urgência, de acontecimentos que não estão sendo encenados, o que, em certas sequências, é verdade, pois há falas que não estavam indicadas no roteiro. A participação de não atores, moradores da localidade, passantes olhando para a câmera nas cenas de rua, tudo isso cria um processo de distanciamento que faz paralelo com o fato de Iracema ficar observando o que está à sua volta. Numa cena em um restaurante, o filme abandona os personagens principais que conversam em uma mesa, para seguir um freguês que acabou de entrar. Em momentos assim, o filme, que tem uma trama ficcional, assume um caráter documental, pois interferências não planejadas de não atores se tornam parte da diegese. Esse processo de hibridação – presente na caracterização de Iracema e na narrativa fílmica – e de discussão de identidades levanta questões de poder. Como índia adolescente e prostituta, Iracema se equipara aos outros destituídos que aparecem no filme. Às vezes eles ensaiam uma espécie de reação contra a opressão produzida pelos donos do poder (até mesmo Iracema, decadente como está no final do filme, enfrenta Tião, e os “entrevistados” não perdem a ocasião de criticar a elite dominante), e o filme, em seu modo desadornado, toma seu partido. Do mesmo modo que a identidade de Iracema não é apenas a de uma garota indígena deslocada, errante, mas também aquela de uma prostituta adolescente tentando sobreviver num Brasil ficcional de progresso, integração e bem-estar social, o filme de Bodanzky e Senna é um híbrido em que as fronteiras estão esmaecidas, fronteiras entre um relato ficcional dos infortúnios de uma personagem imaginária e um relato documental da opressão, indiferença e desperdício de dinheiro e energia de um regime arrogante e traiçoeiro. |
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Bibliografia | CANCLINI, Nestor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 4. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
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