ISBN: 978-85-63552-07-5
Título | Fabulação e ambiguidade no documentário Terra deu, terra come |
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Autor | Carol do Espírito Santo Ferreira |
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Resumo Expandido | Examinaremos aqui o documentário Terra deu terra come (Rodrigo Siqueira, 2010). Segundo a narração do personagem principal Pedro de Alexânia, negro já idoso, descendente de escravos, morador da comunidade de Quartel do Indaiá, nos arredores de Diamantina, norte de Minas Gerais, estamos prestes a presenciar o enterro de João Batista, um vizinho seu, morto há pouco “de velhice mesmo”. Vemos a agitação em casa de Pedro para a arrumação do corpo – é preciso decidir onde colocá-lo, escolher os panos com que o cadáver será coberto.
Há uma estranha naturalidade – uma alegria até – com que as poucas pessoas que ali vivem lidam com a presença do defunto entre elas, mas isso não chega a intrigar o espectador. Sabemos estar diante de um documentário produzido numa comunidade relativamente isolada, onde não há sequer eletricidade, e onde perduram costumes tradicionais estranhos aos nossos próprios hábitos. Em função disso, deixamos que se desenrole naturalmente a narrativa. O morto é posto um pouco à parte, para que se vá mostrando a história de Pedro, que se entrelaça profundamente com a história do garimpo na região. Ouvimos casos de traições, armadilhas e mortes, decorrentes da ambição, aprendemos fórmulas de feitiços e algo das práticas artesanais de garimpagem. Na penumbra das sequências que se passam dentro da casa de Pedro, porém, ocorre algo que coloca em xeque o caráter de discurso do real do filme. Com uma máscara de papelão pintado que lhe cobre todo o rosto, o corpo curvado numa nova postura, Pedro encarna, com voz alterada, um personagem estranho, que fala de um certo tesouro que enterrou, que deve proteger. Ele se sente ameaçado, foge, esconde-se, ameaça, negaceia, ri-se do adversário que não sabemos ao certo quem é – talvez a própria equipe de produção do filme. Não sabemos se é o próprio Pedro que brinca com eles e com os muitos netos que enchem sua casa, se aquele é um personagem que faz parte da cultura própria do lugarejo e cuja representação consta da tradição local ou, ainda, se aquele ali representado é o próprio João Batista, antes de morrer ou mesmo num outro plano. Enfim, na penumbra das sequências que se passam dentro da casa de Pedro, paira a dúvida, e na sombra que ela projeta vai tomando corpo para o espectador o desconforto de não se saber mais distinguir ficção e não-ficção. A cada vez que esse personagem enigmático retorna, no meio das sequências claramente documentais onde se narra a vida passada e presente da comunidade, ele parece mais absurdo, mais incoerente, mais deslocado daquela que seria a narrativa de um funeral. Ao final do filme, entretanto, ao mesmo tempo se confirma uma certa dimensão absurda do filme, desconcertando nossos olhares, e revela-se algo (ou muito, não se sabe) de ficcional naquilo que julgávamos, ainda, um documentário. Ao cabo do trajeto que leva da casa de Pedro ao lugar onde se enterra os mortos do lugar, percorrido sob o canto dos vizungos “puxados” por Pedro, abre-se a rede onde vinha transportado o corpo, para enfim sepultá-lo. Para perplexidade do espectador, quem está se revela é o caule de uma bananeira, coberto parcialmente pela máscara de papelão que ocultava o rosto do incômodo personagem que mencionamos há pouco. Diante disso, bailam diferentes questões: como lidar com as imagens que julgamos registrar as marcas do real, se num salto elas como se viram pelo avesso e revelam-se ficcionais? O que fazer com as impressões que vão deixando tais imagens em nossa memória, se não é possível precisar de que universo elas emergem – se do imaginário ficcional, se do próprio real? Interessa-nos também compreender de que maneira as imagens do cinema permitem que se construa um processo de fabulação, de maneira tal que essas mesmas imagens se assentem e passem a residir em nossa memória como excertos mesmo de um conhecimento válido vindo do real. Como se engendra essa potência fabulatória das imagens? |
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Bibliografia | COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder – A inocênciua perdida. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.
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