ISBN: 978-85-63552-11-2
Título | Memórias das coisas, corpos e cacos: afeto e cronotopias da intimidade |
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Autor | Erly Milton Vieira Junior |
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Resumo Expandido | Nos últimos vinte e cinco anos, vemos emergir, no panorama do cinema mundial, um amplo conjunto de obras audiovisuais que buscam tatear a presença invisível do cotidiano como possibilidade narrativa, a partir da sobrevalorização do espaço íntimo dos personagens e do trânsito de afetos que se dá no encadeamento dos elementos que constituem a trama. Nesse tipo de cinema, em que a dimensão corporal torna-se fundamental para o estabelecimento da experiência cinematográfica, outras são as construções espaço-temporais (cronotopos, no sentido bakhtiniano do termo) nas quais se desenvolvem as tramas – ou, em alguns casos, onde se depositam os fragmentos delas.
Para Leonor Arfuch (2005), essas “cronotopias da intimidade” se articulariam dentro de um processo contemporâneo de descoberta da interioridade como inquietude, de um desassossego que não é apenas palavra, corpo, imagem ou território, mas também tensionamento entre o público e o privado, no âmbito da confecção de uma nova identidade. A intimidade, assim, assume-se como a esfera que mais intensamente nos constitui: não mais uma ideia de privação, mas sim assumindo a dupla função de abranger o doméstico (tangível) e proteger o íntimo (intangível) do assédio de uma sociedade que quer submeter toda experiência ao imperativo de uma exteriorização homogeneizada e potencialmente esvaziadora de sentidos. Daí a necessidade de se mapear, nesse cinema do cotidiano, tão assumidamente corporal, alguns dos possíveis cronotopos que talvez lhe sejam recorrentes. Pensamos, portanto, em três grandes categorias, que façam dialogar as memórias dos corpos filmados e espectatoriais com essa nova subjetividade resistente que se constrói nesse cinema intimista. A primeira delas se constituiria ao redor das memórias dos objetos. Estes, para Laura Marks, seriam um tipo potente de imagem-lembrança ao mesmo tempo articulada na intersecção entre uma história pessoal e um processo de desterritorialização cultural, funcionando como “sobreviventes teimosos de outro lugar-tempo que traz seus conteúdos voláteis para o presente” (MARKS, 2010: 310). Em alguns casos, tais objetos, ao serem recobertos primeiramente por uma camada de história, e em seguida por várias camadas de sedimentos afetivos, podem se assumir como “fósseis”, cuja “radioatividade” (MARKS, 2010) pode ser reativada através de sua circulação em novos contextos históricos, como nos filmes Amor à flor da pele (2000), de Wong Kar-Wai, e As luzes de um verão (2000), de Tran Anh Hung. Uma segunda possibilidade estaria nas memórias corporais, em especial num certo cinema que sobrevaloriza a dimensão sensorial através de uma espécie de câmera-corpo, dotada de uma visualidade háptica (MARKS, 2000), que busca emular a dimensão tátil da imagem. Observada especialmente nos filmes de Claire Denis (Bom trabalho, 1999) e Karim Aïnouz (Madame Satã, 2002), ela tenderia a percorrer a superfície do objeto: mais inclinada para o movimento do que para o foco, mais aproximada ao roçar (graze) do que ao olhar (gaze), forçando o observador a contemplá-la por si só, microperceptivamente, fazendo ativar os saberes e memórias que carregamos em nossos corpos e sentidos. Por outro lado, um certo desejo de expansão e reorganização do microcosmo ao redor do cineasta, num desejo juvenil de agregar objetos exteriores a seu universo íntimo, marcaria uma terceira categoria, que se apropria desses fragmentos materiais ou midiáticos para conferir-lhes um sentido afetivo. Tratamos aqui tanto da câmera curiosa que investiga a vizinhança da cineasta Sadie Benning, em Girl Power (1992), num misto de familiaridade e estranhamento/ desconfiança com a qual se constrói toda uma identidade adolescente, quanto da intensa vontade de tocar o mundo, presente em Caracol (1994), de Naomi Kawase. Também se inclui aqui toda uma apropriação da dimensão midiático-tecnológica que rodeia essa esfera cotidiana do privado, nos experimentos narrativos presentes em Fica comigo (2005), de Eric Khoo. |
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Bibliografia | ARFUCH, Leonor (org.). Pensar el Tiempo. Buenos Aires: Paidós, 2005.
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