ISBN: 978-85-63552-11-2
Título | Quando a fala hesita: diálogo e diferença em A falta que me faz |
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Autor | Carla Ludmila Maia Martins |
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Resumo Expandido | Uma cena. Alessandra está sentada, em meio às rochas. A câmera, posicionada à meia distância, enquadra a personagem em plano americano. O que se passa diante da câmera é um diálogo entre Alessandra e a equipe do filme A falta que me faz (2009): a diretora Marília, o técnico de som Canário e o fotógrafo Ivo. Ao contrário do que se espera, quem começa a colocar perguntas é a própria personagem. Ela questiona, escuta, duvida, expõe suas dificuldades de entendimento. Por vezes, o diálogo parece falhar, se embaraçar. A cena torna evidente a diferença entre os mundos que ali estão colocados em contato, em contraste: o daquela jovem moradora de Curralinho, Minas Gerais, e o da reduzida equipe que a filma, entre as rochas da Serra do Espinhaço.
Não é novidade, no documentário brasileiro, esse método de aproximação da personagem pela conversa ou pela entrevista. O que nos chama atenção, em particular, na cena com Alessandra, é uma certa reversibilidade da relação entre quem filma e quem é filmado, quando este último, para além de foco de atenção, passa a agir propositivamente, levando a relação a se confrontar com seus próprios limites. No filme, uma das garotas chega a convidar Marília para ser madrinha de seu filho por nascer, pedido diante do qual a diretora silencia. Seu silêncio é a expressão de uma hesitação, de um impasse: até onde ir, no intuito de aproximação ao outro? A hesitação de Marília expõe a relação entre quem filma e quem é filmado no que ela tem de frágil, tensionando suas fronteiras, exibindo seus hiatos e impossibilidades. O que está em questão é bem mais que o cotidiano de um grupo de meninas de Curralinho, embora esse cotidiano marque presença no filme. Antes, são formas de relação em que as diferenças não são minimizadas, seja entre as meninas do grupo, seja do grupo com a equipe. Contudo, há brinde e riso, há troca de anéis, há alianças. As relações, no filme, fazem-se e desfazem-se, são instáveis, provisórias, variam entre intimidade e afastamento, mas afirmam-se. A exemplo da sequência da conversa com Alessandra, supomos que as relações em A falta que me faz se firmem precisamente pela hesitação, pela falta de uma justa medida para se aproximar do outro. É por essa falta, nesse hiato, que o filme se faz. Não podemos perder de vista que esse é um filme que já leva no título uma falta enunciada em primeira pessoa e em tom passivo-reflexivo. A quem esse pronome “me” se refere? À diretora? Às meninas? Ou, não sendo possível determinar um pólo único, um sujeito privilegiado nessa história, poderia a primeira pessoa se referir ao filme em si, movido pela força da alteridade? Talvez pudéssemos dizer: um filme feminino que sonha com o “tu”, a segunda pessoa que garante a relação (“je rêve de toi” diz a canção de encerramento). Acreditamos que os traços observados em algumas passagens do filme, sobretudo nos momentos em que há diálogos com a equipe, dizem respeito a uma política, no sentido que Rancière confere ao termo: lugar sempre por se fazer, acontecimento provisório e raro que não pacifica as diferenças pelo consenso, mas as sublinha, dissensualmente. Antes de uma tentativa de estabelecer um mundo comum pela elisão das distâncias, trata-se de inventar um mundo em que o comum seja, paradoxalmente, firmado sobre o que não se concilia, o que não faz unidade. Um comum em que as partes permanecem sem formar um todo coerente e homogêneo. Vale lembrar que, para Rancière, a arte pode ser política justamente quando pressupõe a invenção de cenas possíveis, em que os espaços de atuação não estão dados. No intuito de acercar esse pensamento, buscaremos investigar como uma cena pode criar uma situação de palavra que reconfigura – ainda que de maneira tênue e passageira - o espaço da experiência sensível. |
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Bibliografia | GUIMARÃES, C.; LIMA, C.; GUIMARÃES, V. Mise en scène e experiência estética: o trabalho do espectador em "A falta que me faz". Texto apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Experiência Estética do XXI Encontro da Compós, na Universidade Federal de Juiz de Fora (12 a 15 de junho de 2012).
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