ISBN: 978-85-63552-11-2
Título | O cinema guarani contra o pensamento do Um |
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Autor | Bernard Belisário |
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Resumo Expandido | À medida que os filmes dos cineastas indígenas se "reproduzem" animados pela expressão de uma diferença (QUEIROZ, 2008) novas questões se colocam não só acerca de um cinema indígena como categoria, mas da própria noção de identidade no filme documentário. O que parece mobilizar tanto a crítica da tipificação sociológica (BERNARDET, 2003), quanto da noção de representação como vetor de figuração da identidade (GUIMARÃES, 2006), é a ineficácia desses conceitos para se pensar os modos pelos quais o documentário pode e tem se engajado no presente e nas maneiras de se relacionar com a alteridade.
O desafio que os filmes indígenas nos colocam do ponto de vista da teorização e da crítica é o de, abandonando uma ontologia do cinema indígena, reconhecer de que maneira se dá a ver sua singularidade. Neste sentido, reconhecemos que a dimensão êmica (QUEIROZ, 2004) destes filmes é também tautegórica (VIVEIROS DE CASTRO, 2006), ou seja, não só produzem imagens de um ponto de vista "interno" (às comunidades), mas criam sua própria referência. Seria preciso então pensar estes filmes a partir das categorias ou dos modos de ser do próprio pensamento indígena ou selvagem. Nesta apresentação buscaremos, então, discutir como uma cosmologia pode operar na escritura fílmica. Para tanto, propomos a análise dos dois filmes realizados pelos cineastas mbya-guarani: Duas Aldeias: uma caminhada (2008) e Bicicletas de Nhanderú (2011). Se partirmos da temática já bastante conhecida da cosmologia guarani – a busca da terra sem mal (yvy marae'ў) – para pensarmos como o cinema guarani se engaja no mundo, os aspectos da mobilidade e da imperfeição (diante da reduzida porção de terra que lhes resta e da presença do "branco" em seu cotidiano) tornam-se pontos centrais nesse engajamento. É inegável o caráter político de uma antropologia nativa ou reversa (como Jean Rouch a sonhava e a qual Ruben Caixeta [2008] identifica no primeiro filme elencado para essa análise), contudo é em um ponto mais radical do pensamento guarani que acreditamos residir a verdadeira potência política destes filmes. A metafísica religiosa tupi-guarani se estrutura a partir de uma disjunção singular entre os povos ameríndios. O mundo dos deuses e o mundo dos homens encontram-se irremediavelmente cindidos pelo caráter de imperfeição ontológica que rege o mundo dos homens. E aqui chegamos ao ponto que nos parece crucial neste pensamento: "a desgraça se engendra na imperfeição do mundo, porque de todas as coisas que compõem o mundo imperfeito, pode-se dizer que são uma. Ser um: é a propriedade das coisas do mundo. Um: é o nome do Imperfeito. Em suma, resumindo a virulenta concisão de seu discurso, que diz o pensamento guarani? Ele diz que o Um é o Mal" (CLASTRES, 1978). A terra má (yvy mba'e meguã) é um mundo fundado sob o signo do Um. Se, por um lado, é então contra o pensamento do Um que se estrutura o pensamento guarani, por outro, é na recusa do Um do Estado (o poder político isolado dos próprios indivíduos) que as sociedades indígenas das terras baixas sul-americanas se estruturam, conforme a teses da antropologia política de Pierre Clastres (1978). A implicação deste pensamento cosmopolítico em uma escritura fílmica nos parece um caminho interessante para pensarmos como o cinema indígena cria a sua política e a sua estética. Como uma cosmologia pode traduzir-se em uma poiesis. Como se reconhecer o próprio mundo mbya-guarani como olhar. "De dentro daquilo que se chama representação – que inclui o cinema –, nesse modo de estabelecer relações que, sem dúvida, funda as sociedades humanas, o olhar nunca é apenas o olhar do homem para o mundo, ele é também (e às vezes sobretudo) o olhar do mundo para o homem. Sendo assim, o cinema nada pode fazer além de nos mostrar o mundo como olhar" (COMOLLI, 2008). |
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Bibliografia | BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
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