ISBN: 978-85-63552-11-2
Título | Cinema da intimidade e ditaduras militares: passagens possíveis |
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Autor | Patricia Furtado Mendes Machado |
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Resumo Expandido | Apesar do grande número de filmes de ficção e documentários que, a partir da década de 80, tratam do período da ditadura militar brasileira, o tema não havia sido explorado no país através de uma proposta mais ensaística. Só recentemente filmes como Diário de uma busca (2010), de Flávia Castro, e Uma longa viagem (2011), de Lucia Murat, apostam na memória afetiva e familiar para tratar de questões como o exílio, a prisão, as torturas, os assassinatos, os desaparecimentos de presos políticos. Ambos os filmes revelam os rastros deixados nas vidas atravessadas de forma direta ou indireta pela repressão dos regimes militares latino-americanos e estabelecem relações entre o que é da ordem do pessoal e do coletivo. Nossa proposta é pensar de que maneiras e quais os procedimentos usados pelas cineastas para fazer essa passagem. Os dois documentários se organizam a partir de métodos narrativos similares, como a leitura de cartas como fio narrativo, a narração em primeira pessoa, a montagem de imagens de arquivos públicos e privados, as imagens poéticas dos lugares por onde as cineastas e os personagens dos filmes passaram durante suas viagens e fugas. O filme de Lucia Murat conta ainda com a encenação da escrita e da leitura das cartas pelo ator Caio Blat. A cineasta recusa o naturalismo e retoma procedimentos da vídeo-arte e da performance para criar sequências com o ator em diferentes cenários, muitos deles com projeções de imagens dos lugares por onde Heitor, seu irmão viajante, passou. O ator circula em meio a uma multiplicidade de imagens de texturas diversas (super 8, vídeo, fotografias), em uma espécie de memória-mundo onde vemos cidades, paisagens e pessoas de tempos diferentes que se mesclam a camadas distintas de lembranças de Heitor. Assim como Michel Poivert (2009), apostamos na ideia de que a partir da tradução artística se torna possível compartilhar, tornar comum, elaborar e digerir um momento histórico de grandes dimensões. O importante é, segundo Poivert, que essa tradução sempre possa ser refeita e atualizada na criação de novas poéticas, críticas, subjetividades. Quando congelamos a representação de um acontecimento no tempo, corremos o risco de transformá-lo em ícone que se repete, em clichê, em uma memória-morta. O papel da arte, nesse sentido, seria o de juntar os campos artístico e político para traduzir o acontecimento mantendo a sua dimensão, sinalizando para os seus perigos. Os dois documentários exploram essa junção de arte e política apostando na dimensão subjetiva do acontecimento histórico como possibilidade de suscitar uma memória do corpo de quem sofre a dor, uma memória que está também nesses corpos que se movimentam e se materializam nas imagens. Trata-se de um cinema da memória (François Niney) em que as cineastas evocam suas histórias pessoais e, com suas questões e dúvidas, tensionam as imagens das lembranças dos testemunhos com aquelas autorizadas pela história oficial. Nesse caso, uma investigação histórica seria um trabalho sobre objetos perdidos, uma pesquisa do tempo perdido a partir de vestígios de informações que não podem ser observadas de forma direta. Em O diário de uma busca essa investigação se dá pelo cinema, que se torna ainda testemunha (Daney) da tentativa da diretora de encontrar respostas sobre dúvidas que envolvem a morte de seu pai. Nessa busca surgem traços dos caminhos percorridos pela filha na investigação de uma morte duvidosa, mas também por uma geração obstinada, idealista e radical na luta por seus ideais. Em Uma longa viagem, o tempo perdido se atualiza através das memórias inesperadamente precisas de Heitor, apesar dos efeitos das drogas, dos remédios, das internações. Para além das escolhas pessoais do irmão de Lucia Murat, se desenha diante de nós a trajetória de uma geração libertária, hippie, sonhadora e temerária, que buscava nas drogas uma experiência quase mística. Os filmes mostram assim o quanto histórias privadas podem se transformar em uma história do mundo. |
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Bibliografia | DANEY, Serge. Le travelling de kapo. IN: Persévérance. Disponível em: http://www.pol-editeur.com/pdf/361.pdf Acessado em julho 2008.
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