ISBN: 978-85-63552-11-2
Título | Santiago e Babás: relações de poder em casa e em cena |
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Autor | Mariana Souto |
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Resumo Expandido | No cinema documentário, para além dos temas e sujeitos tornados imagem, imprimem-se também as marcas da relação entre documentaristas e documentados. Jean-Louis Comolli nos diz que “se algo é documentado, é essa relação” (2010, p. 339). O presente artigo tratará de dois filmes ensaísticos: Babás (2010), curta-metragem de Consuelo Lins, é nomeado pelas profissionais que cuidaram da cineasta, de seus filhos e amigos, enquanto Santiago (2007), longa de João Moreira Salles, recebe o nome do ex-mordomo da família do diretor. Apesar de muitas diferenças, são ambos os filmes de forte inflexão subjetiva sobre empregados domésticos vistos pelo olhar dos patrões.
Tais obras partem de imagens de arquivo, tanto próprias como alheias (sejam fotografias de crianças e suas amas de leite, filmagens caseiras ou o material bruto de um documentário filmado há 13 anos) para tecer um ensaio, entendido aqui não como gênero, mas como modo ou modulação do pensamento, uma investigação errante, povoada de incertezas e derivas (BRASIL, 2010). Nos dois filmes, os cineastas espreitam, investigam e analisam, por meio das vivências pessoais, relações de poder que os extrapolam. Se, de acordo com Ilana Feldman, o ensaio audiovisual atua na mediação das passagens “entre a subjetividade e sua historicidade” (FELDMAN, 2009, p. 1), no caso de nossos objetos, observamos, no trato de histórias íntimas, a possibilidade de mobilização dos contrastes, distâncias e proximidades entre, de um lado, elites e camadas médias e, de outro, as classes baixas. Os filmes, que assumem uma visão em “plongée” da pirâmide social brasileira, trazem a marca da má consciência de classe. Nesse sentido, talvez sejam obras mobilizadas por um desejo de elaboração de dívida, de reparo de um dano. Não podemos deixar de notar que eles figuram como certa novidade no cinema brasileiro não somente por se calcarem nas perspectivas da elite, mas por sua explicitação – a desigualdade é confessa e a dívida, dramatizada. Tanto Consuelo Lins quanto João Salles buscam compensar uma invisibilidade histórica, produzindo retratos de seus entrevistados, dedicando-lhes uma escuta, ao mesmo tempo em que revisitam seus próprios enganos e limites. Na narração, Salles expressa um mea culpa ao dizer que, no momento da feitura das imagens tratou Santiago de maneira autoritária, não lhe deu atenção quando este quis compartilhar um segredo. Sobre uma antiga babá de seu filho, Lins discorre: “Eu não podia imaginar um trabalho que me obrigasse ficar seis dias longe do meu filho. Preferi não pensar na situação dela nessa época”. Vemos que, no trabalho com imagens de arquivo, a retomada evoca o momento da tomada (LINDEPERG; COMOLLI, 2010), tornando nítida uma distância entre os dois tempos que aqui se pauta por uma espécie de evolução (EDUARDO). Antes não escutei, agora ouço. Antes neguei, agora vejo. Ainda assim, certas tentativas de reparo carregam uma ambiguidade: Lins, por exemplo, oferece visibilidade às babás que raramente foram representadas nos filmes de família em diversas épocas, mas seus retratos talvez prolonguem uma mise-en-scène pautada pela relação de obediência, a designação de um corpo a um determinado espaço, um pedido de imobilidade, de uma vestimenta, de um olhar. Assim, questionamos: até que ponto as posições de patrão/empregado se aproximam ou se distanciam das de documentarista/documentado? Até que ponto relações de poder anteriores ao filme deixam traços em sua escritura? Ainda que os empregados sejam os protagonistas e até mesmo batizem as obras, em que medida a visão de mundo dos empregadores define o curso dos filmes? Nesse sentido, interessa-nos investigar, em Babás e Santiago, as relações entre sujeitos filmantes e filmados, sobretudo por meio da observação da mise-en-scène e da montagem (Didi-Huberman nos diz que uma imagem de arquivo é desprovida de sentido enquanto não estiver em relação com outros elementos), considerando as singularidades da forma ensaística no cinema documental. |
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Bibliografia | ADORNO, T. O ensaio como forma. In: Notas de literatura I. São Paulo: Editora 34 e Duas Cidades, 2003.
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