ISBN: 978-85-63552-11-2
Título | O olhar moderno e a cidade em Filme de amor, de Júlio Bressane |
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Autor | Fabio Camarneiro |
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Resumo Expandido | A sequência que encerra Filme de amor, de Júlio Bressane, trata das relações entre corpo e espaço urbano, tratadas durante todo o filme.
A sequência analisada se inicia com um plano geral da cidade do Rio de Janeiro, em preto e branco: a Baía de Guanabara ao fundo, o Pão de Açúcar à direita. Tem início uma canção (uma versão do “Hymne à l’amour”, de Édith Piaf e Marguerite Monnot, na voz da cantora Dalva de Oliveira). O plano seguinte está ao nível do chão, com uma boca de bueiro em primeiro plano e as pernas e pés de vários transeuntes em quadro, atravessando a rua. Do céu, sem nenhuma referência humana, chegamos, em um corte, ao chão. Em outro plano, novo contraste: uma estátua equestre – monumento da história oficial – é observada por duas mulheres. Elas conversam entre si e saem de quadro, durante alguns segundos o plano mostra apenas a estátua. Temos uma oposição entre o monumento (a cidade em si) e as pessoas, os corpos que ocupam essa mesma cidade. Um pouco mais adiante, um movimento de câmera adentra um edifício comercial: Quando a porta do elevador se abre, surge uma das personagens femininas do filme, vestindo o uniforme de ascensorista. (Os personagens centrais de Filme de amor representam as Três Graças da mitologia.) A câmera entra em um salão de cabeleireiro e surge o personagem masculino do filme, trabalhando como barbeiro. Termina a canção e ouvem-se os sons do salão de cabeleireiros: ruídos, murmúrios, a tesoura em seu movimento de corte. Atrás do barbeiro, vemos a última das três personagens centrais, que também trabalha no salão, como manicure. Esse mesmo plano, desde a entrada do edifício comercial, é repetido, porém, agora, em cores. Outra mudança: na segunda vez, a última personagem levanta o olhar e encara diretamente a câmera. Um olhar que, de maneira semelhante, é “devolvido” ao observador pode ser encontrado em um quadro do pintor francês Édouard Manet. Em Filme de amor, Bressane utiliza citações diretas de várias obras da pintura ocidental (Botticelli, Goya, Courbet, Balthus), mas talvez seja Manet quem, mesmo sem ser citado textualmente, tenha relações mais intensas com o filme. Luiz Renato Martins descreve “Un bar aux Folies-Bergère” (1881-2): “Na cena, a atendente fita um observador, comprador potencial, que se deixa entrever obliquamente no espelho” (MARTINS 2007, p. 73). Do mesmo modo, em Bressane, a manicure devolve o olhar do espectador. Mas por que Manet, entre tantos outros exemplos de olhares “devolvidos”, figura tão comum em todo o primeiro cinema (e que Jacques Aumont analisou ao relacionar Lumière e os pintores impressionistas em O olho interminável)? Martins responde ao escrever que o quadro trata “da distinção entre o classicismo ou o mundo mental que se foi, e a modernidade ou o mundo tal como é na sua materialidade presente”. (MARTINS 2007, p. 72). Bressane, em seu jogo de oposições na sequência final do filme, coloca frente a frente esse “mundo mental que se foi” (os monumentos da cidade e seu espaço geográfico, que trazem em si a escrita de uma história) em oposição a um mundo da “materialidade presente” (o mundo dos corpos e do sexo, que Bressane trabalha em todo o filme). Essa a razão de dois planos idênticos, um preto e branco e outro colorido: dois “mundos” (a história da cidade e o cotidiano de seus habitantes) que coexistem e se interpenetram, que deixam marcas um no outro. Entre esses dois extremos, Bressane coloca algo que não existe (nem pode haver) na pintura de Manet: o tempo, ou, mais especificamente, a música. Após a canção, o último plano do filme mostra o mar e a praia. É na natureza (e em sua representação, um dos gêneros clássicos da pintura do século XIX) que Bressane vai buscar os mitos de formação da história do Rio de Janeiro – que são os mitos possíveis para a formação da história do Brasil. |
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Bibliografia | AUMONT, Jacques. O olho interminável: cinema e pintura. tradução: Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
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