ISBN: 978-85-63552-11-2
Título | O fantasma da anomia: sobre o fantástico na narrativa dos irmãos Coen |
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Autor | Nuno Manna Nunes Côrtes Ribeiro |
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Resumo Expandido | No cinema estadunidense contemporâneo, a dupla Joel e Ethan Coen é notadamente emblemática por trabalhar sempre em um registro entre a autoria e o cinema de gênero, tendo se apropriado de dicções e temas do western, do noir, da screwball comedy, entre outros. Uma marca muitas vezes pouco aparente mas fortemente latente no cinema coeniano é uma inclinação de seus universos ao fantástico. Se na filmografia dos Coen o obscuro, o absurdo e o insólito frequentemente assaltam suas narrativas, o filme Um homem sério (A serious man, 2009) surge como obra emblemática pelo uso particular desses elementos.
Como bem destaca Rafael Ciccarini (2007), os diversos filmes dos Coen são povoados por homens falhos e confusos vivenciando histórias de desacerto, descontrole e imponderabilidade. Segundo ele, nada no universo coeniano é certo, fechado, perfeitamente lógico ou linear; não há ali transcendência ou idealismo possíveis, nem mesmo raciocínios ou atitudes seguras; o homem (personagem ou espectador, adicionaríamos) está lançado a um mundo que não é regulado por nenhuma ordem que garanta o êxito final de suas ações. Frédéric Astruc (2001) enxerga no fantástico componente essencial à estética e às intrigas coenianas, ainda que ele se dilua na estrutura profunda da representação, em percursos espiralados que conduzem os personagens a se confrontar com seus próprios demônios. “O que está acontecendo?”, questiona por vezes o protagonista de Um homem sério, perplexo diante da incoerência e irrazoabilidade que passam a assolar seu destino. Larry Gopnik surge como encarnação de uma forma racional e ordenadora de se relacionar com o mundo. A vida familiar, profissional e espiritual de Larry parecia ir bem, até que se desenrola uma trajetória de desventuras que parecem colocar o protagonista em uma profunda crise epistemológica. Nós, espectadores, vivenciamos a vertiginosa experiência de acompanhar o universo de Larry sendo desestabilizado por uma delirante trajetória kafkiana, onde as regras de compreensão e julgamento parecem nos escapar pelos dedos. E não seria essa a essência do fantástico? Em um mundo que poderia ser o nosso, aquele que conhecemos sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar – assim Tzvetan Todorov (2004) define o fantástico em seu paradigmático estudo. O fantástico constituiria uma laceração no mundo da regularidade a partir da aparição daquilo que não pode aparecer, mas aparece. Nesse sentido, o fantástico possui uma estreita relação com as pessoas em sua cotidianidade, desafiando os parâmetros da normalidade ao colocar em confronto noções sobre o natural (o regular, o coerente, o possível) e o sobrenatural (o insólito, o inexplicável, o absurdo). O fantástico surge, nesse sentido, como interessante operador heurístico para a compreensão da narrativa de Um homem sério, em um circuito mimético que conjuga ética, poética e experiência (RICOEUR, 1994). Menos interessante do que tentar classificar o filme como pertencente ou não de um gênero fantástico, do que atentar para sua estrutura ou arquitetura, é perceber como sua configuração lança mão de uma tessitura fantástica, fundada por uma mise en scène marcada pela discordância a partir de estratégias despragmatizantes. Em última instância, não só o filme escapa aos limites do gênero como, em alguns momentos, parece transformar o fantástico em uma retórica, sugerindo uma visão profundamente cínica sobre as formas de saber hegemônicas. “Aceite o mistério”, nos diz um dos personagens, como que nos obrigando a nos conformar diante da imponderabilidade. Em que medida a narrativa coeniana nos conduz a uma experiência crítica de questionamento acionando a anomalia do fantástico?, e em que medida ela instaura uma ordem onde a anomia foi internalizada? São respostas que a arquitetura do filme não nos dará, e que talvez se entrelacem em a poderosa e ameaçadora imagem de um tornado que ao final se anuncia. |
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Bibliografia | ASTRUC, Frédéric. El cine de los hermanos Coen. Barcelona: Paidós, 2001.
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