ISBN: 978-85-63552-11-2
Título | Naomi, Nascimento, Maternidade, Kawase |
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Autor | Geisa Rodrigues |
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Resumo Expandido | Em entrevista a Aaron Gerow, a cineasta Naomi Kawase faz uma instigante observação sobre o documentário História de gente da montanha (1997): “Para mim, a questão não é nem social, nem o despovoamento. Eu mesma sou a questão.” Tal comentário ilustra, em parte, a relação que Kawase estabelece com o próprio ato de filmar. Uma forma de se descobrir, se explorar no contato com o outro. O desinteresse por questões sociais não seria, entretanto, o sintoma de uma apatia política, mas o efeito de um formato de abordagem marcado pela crise da subjetividade contemporânea. Suely Holnik observa que as forças de criação e resistência nascem de um paradoxo entre as duas formas de apreensão do mundo enquanto matéria: o mundo como forma (campo da percepção) e o mundo como força (campo das sensações). “Se a percepção do outro traz sua existência formal à subjetividade, existência que se traduz em representações visuais, auditivas, etc., já a sensação traz para a subjetividade a presença viva do outro, presença passível de expressão, mas não de representação.”(2003, P.2). No processo atual de banalização e apropriação mercadológica das sensações, haverá uma inevitável separação entre as potências de criação e de resistência, incapazes de acessar o campo das sensações. É essa crise que o olhar de Kawase parece perseguir. Em seus filmes a câmera assume, muitas vezes, o papel do corpo da cineasta, abrindo-se às alteridades e relacionando-se afetivamente com elas. Nessa relação íntima e quase explícita com as pessoas, os objetos e a paisagem, as alteridades emergem por meio de uma amálgama de sensações atemporais e fluídas, resgatando a potência criativa do corpo e do desejo.
Isto se torna, sem dúvida, mais evidente nos filmes em que se dedica à sua experiência familiar e afetiva, como Em seus braços (1992), Céu, vento , fogo, água, terra (2001). Na trilogia Caracol (1994), Viu o céu? (1995) e Sol poente (1996) e Nascimento/maternidade (2006). Seja no contato da câmera com a pele de sua mãe adotiva no fim da vida, contrastada com as imagens íntimas e viscerais de seu corpo dando à luz, ou no desejo obsessivo de tatuar seu corpo com a imagem do pai ausente. Sua obra, assim como a de alguns cineastas de sua geração, é claramente pautada em um novo paradigma estético, proposto por Félix Guattari, para lidarmos com o “agenciamento desterritorializado” contemporâneo, em que a potência estética de sentir, ou seja, o campo dos perceptos e afetos ganha uma posição privilegiada com relação aos agenciamentos coletivos de enunciação, mas ao mesmo tempo também poderá se constituir como foco de resistência (GUATTARI,1998, p. 132-134). Kawase afirma que há sempre algo “faltando” em si. E que os filmes permitem confirmar sua existência tornando espaços imaginários mais reais. Relatos autobiográficos? Leonor Arfuch sugere pensarmos a autobiografia a partir da concepção proposta por Bakhtin, de uma dissociação de identidades entre autor e personagem. Sem coincidências entre a experiência de vida e a arte, haveria sempre um estranhamento entre o autor e sua história. Longe de disfarçar este estranhamento, Kawase procura se construir nele, num processo contínuo e disforme de criação e recriação. O vazio mencionado por Kawase só se resolve no próprio processo de filmagem. A memória afetiva é frequentemente evocada, por meio de fotos, sons, objetos, espaços demarcados, mas em geral editados de forma fragmentada e difusa. A intimidade com os corpos (os outros e o seu próprio), incisivamente imposta por sua câmera, cada vez mais próxima- o desejo de quase tocar com a câmera é algo que a cineasta admite perseguir - , proporcionará uma experiência de si em permanente desterritorialização. Dessa forma, a análise do papel do corpo em parte da obra da cineasta permitirá uma reflexão não apenas sobre a dimensão afetiva nos relatos autobiográficos contemporâneos, mas também sobre o papel do cinema como espaço de performance de formas criativas de existência. |
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Bibliografia | ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: Eduerj, 2010.
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