ISBN: 978-85-63552-11-2
Título | Tradição (re)encenada: o documentário e o apelo da diferença |
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Autor | Amaranta Cesar |
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Resumo Expandido | Terra Deu, Terra Come (2010), de Rodrigo Siqueira, Bicicletas de Nhanderú (2011), de Patrícia Ferreira e Ariel Ortega, e Kene Yuxi: as voltas do kene (2010), de Zezinho Yube, enfrentam, cada um a sua maneira, os desafios de documentar uma comunidade em vias de transformação, cujas práticas cotidianas e rituais estão ameaçados, a partir do desejo de re-afirmar ou recuperar esses modos de vida, de salvá-los, em alguma medida, da ação do tempo. Mas é justamente no confronto com as tensões provocadas pela justaposição de temporalidades presentes em uma cultura em transição que esses filmes nos mostram a impossibilidade de simplesmente representar um estado de coisas em mutação ou desaparição e provocam, instigam ou suscitam gestos e encenações, através dos quais o documentário afirma-se como uma ação, cuja força performativa é capaz de ressignificar um tempo, religando os homens e mulheres do presente ao mundo do passado.
Esses desafios e procedimentos não são, todavia, novos, inaugurais. Na década de 60, Pierre Perrault escolhe filmar a transição por que passam comunidades de canadenses francófonos, a partir de uma apropriação singular da câmera portátil e do som sincronizado, que se tornaram em suas mãos instrumentos da extensão para o cinema da luta pela afirmação da diferença cultural do Quebec. Segundo François Niney (2002), Pierre Perrault levou ainda mais adiante as transformações da relação do cinema com o real permitidas pelo conjunto sincrônico leve, atribuindo-lhe uma dimensão política para a qual a questão identitária é central. O primeiro filme de Perrault, Pour la suíte du monde (1963), constitui-se não apenas como registro de uma cultura ameaçada mas como instrumento performativo contra o seu desaparecimento. Pour la suíte du monde (pela continuação do mundo) é a justificativa dada por um antigo pescador para a retomada, em 1962, da pesca ao marsuíno, suscitada pelo cineasta. É este empreendimento, a pesca artesanal praticada pelos habitantes da Ilha dos Coudres no rio St-Laurent até 1924, e abandonada por 40 anos, que o primeiro filme do realizador canadense não apenas registra mas incita, faz acontecer. Não se trata de reconstituir ou de reestabelecer, em seu estado de origem, uma prática desaparecida. Trata-se de uma ação viva, vivida e desejada pelos próprios habitantes, que respondem afirmativamente à instigação do cineasta. Há aqui uma partilha de desejos: os realizadores plantam em quem filma um desejo do qual o filme depende para existir e que passa, então, a ser partilhado entre quem filma e quem é filmado. Como afirma Comolli, "são sempre os desejos cruzados que engendram as obras" (COMOLLI, 2008). Ao provocar a encenação da retomada de uma prática artesanal abandonada, o filme de Perrault expõe a tradição e a identidade como práticas de invenção e re-invenção, que não se encerram em um passado imutável, original a ser encontrado e capturado, e que, por isso, demandam do documentário gestos também inventivos, que colocam em crise, inclusive, as fronteiras que separam o real da ficção. Terra Deu, Terra Come, Bicicletas de Nhanderú e Kene Yuxi: as voltas do kene, ao enfrentar o desafio e o desejo de documentar modos de vida de comunidades em vias de transformação que, no entanto, sustentam o desejo e a necessidade de afirmação de uma diferença cultural, parecem se religar às trilhas inauguradas por realizadores modernos, como Pierre Perrault, atualizando e reconstruindo seus procedimentos. A análise dessas obras nos permite, assim, pensar os modos através dos quais o documentário pode enfrentar o apelo da diferença cultural, no Brasil contemporâneo, re-inventando práticas e gestos. Tal abordagem nos permitirá pensar também como e a quem pode, hoje, ainda, interessar a questão da diferença cultural. |
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Bibliografia | BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo, Companhia das Letras, 2003. 2a Edição.
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