ISBN: 978-85-63552-11-2
Título | Pois agora me entrelembro: autoficção como potência documentária |
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Autor | Mariana Duccini Junqueira da Silva |
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Resumo Expandido | “Para saber, é preciso imaginar”, nos diz Didi-Huberman (2010) diante da irredutibilidade de imagens que carregam consigo um rastro de mundo, mas que, arrancadas de um real, são incapazes de fixar as experiências humanas em sua totalidade. Tomada em sua ambivalência fundamental, toda imagem aponta para algo em que nela falta (o próprio enquadramento pressupõe um limite) e para algo que a exorbita (aquilo que se dá para além do visível, com sua porção de incertezas e indeterminações).
Para saber de si, assim como para saber de outrem, também é preciso imaginar: compor em imagens uma existência, os modos de uma relação intersubjetiva. Dar forma a um encontro: constituir como discurso um espaço partilhado entre sujeitos que trabalham para materializar sentidos, por vezes conflituosos ou dissonantes. Encarar a incompletude de toda forma de vida como estímulo à construção de relatos: fazer ver e fazer ouvir lá mesmo onde não é possível ver tudo e dizer tudo. No cinema, é especialmente sensível que as condições do encontro são, ainda que inconscientemente, conhecidas pelos sujeitos: “Há em todo mundo um saber inconsciente sobre o olhar do outro, um saber que se manifesta por uma tomada de posição, uma postura. A cinematografia fornece a prova disso, porque suscita e solicita essa postura (...). O sujeito filmado, infalivelmente, identifica o olho negro e redondo da câmera como o olhar do outro materializado” (COMOLLI, 2008: 81). Interessa-nos nesse posicionamento dos sujeitos que se expõem à câmera uma circunstância fílmica específica: aquela em que eles são impelidos a ficcionalizar suas experiências. Tomando o termo “ficção” em seu aspecto de criação, construto, fabulação. Situamos nossa reflexão em um patamar diverso àquele que dicotomiza factualidade e invenção. Antes, vemos na mesma estratégia autoficcional uma potencialização do caráter documental em determinadas obras. Impregnada com os corpos, gestos e vozes dos indivíduos mostrados, para restituir às vivências deles um estatuto narrativo, a autoficção tende a adensar o aspecto indicial tão caro ao documentário. Essa potencialidade, entretanto, só se efetiva por meio de uma relação: é necessário garantir a esses sujeitos o espaço e a duração propícios à emergência de uma verdade particular, situada. É assim que a montagem propõe uma economia de mise en scène que nos permite percorrer os indícios da relação sujeito que filma – sujeito filmado. Procedemos à análise dos documentários O céu sobre os ombros (Sérgio Borges, 2011) e Girimunho (Clarissa Campolina e Helvécio Martins Jr, 2011), em busca de estratégias fílmicas que possibilitam a inscrição de alteridades não redutíveis a figurativizações estabilizadas ou típicas. A autoficcionalização como regime, ao mesmo turno em que ancora um processo de individuação contrário às representações genéricas dos sujeitos filmados (GUIMARÃES, 2010), confere um princípio de autoridade enunciativa ao sujeito que filma, por ordenar formas de visibilidade contingentes a um mundo fabulado, que não se reduz à materialidade de imagem e sons, mas que por meio dela faz intuir um universo de possibilidades subjetivas. Embaralhando parâmetros de gênero que delimitam as obras como ficções ou documentários, os filmes têm nessa indiferenciação sua matriz expressiva.O céu sobre os ombros põe em cena três personagens (Everlyn, Murari e Lwey) que exorbitam formas convencionais de representação, movendo-se em um mundo imaginário que congrega em um mesmo indivíduo múltiplas formas de ser. Girimunho catalisa as experiências memorialísticas de Bastu e Maria, que, na velhice, interpretam suas histórias, buscando proteger as tradições, ao mesmo tempo em que se abandonam ao desejo de reinventar a própria vida e conferir concretude ao que eventualmente nem aconteceu. É nessa fronteira do entrelembrar, à moda do universo fabulador de Guimarães Rosa, que os sujeitos alcançam sua singularidade irredutível, “desertando-se para outra sina de existir". |
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Bibliografia | COMOLLI, J.-L. Ver e poder – a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
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