ISBN: 978-85-63552-14-3
Título | Cinema Selvagem: Nuit Noire e a Infindável Noite da Animalidade |
|
Autor | Erick Felinto de Oliveira |
|
Resumo Expandido | Sabemos que no documentário sobre a vida selvagem (wildlife documentary), a história, a natureza e sua animalidade constituem comumente o foco narrativo. É possível argumentar, porém, que a natureza penetra de algum modo em todo tipo de cinema. Bazin escreveu, por exemplo, que “a fotografia nos afeta como um fenômeno da natureza, como uma flor ou um floco de neve” (1958: p. 18) – afirmação que lhe rendeu uma série de críticas. Mas existe, efetivamente, uma dimensão da experiência cinematográfica que aponta para essa sensação de imediatismo, como algo ainda intocado pela cultura, virginal e da ordem das sensações. Acostumados como estamos a interpretar e contar histórias, essa dimensão imediata do cinema é raramente perceptível.
Em seu intrigante Le Corps Du Cinema: Hypnoses, Émotions, Animalités (2009), Raymond Bellour sugere três vias de acesso ao cinema que, ao fim e ao cabo, não passam de uma só: a hipnose, as emoções e a animalidade. O que unifica essas três dimensões da experiência do cinema é a presença e primazia de um corpo. Se o cinema foi pensado frequentemente a partir dessas três vias (que também foram extensivamente encenadas por ele) é porque elas oferecem uma entrada privilegiada para o que Bellour chama de “o corpo do cinema”. Um corpo formado, por sua vez, pelo corpo dos filmes (algo que poderíamos definir como uma corpus, como a totalidade da longa história do cinema) e pelo corpo do espectador. O corpo do cinema seria, assim, o “lugar virtual dessa conjunção” (2009: p. 16). Através da hipnose, das emoções e da animalidade entra em cena uma dimensão material e sensorial da experiência-cinema. Trata-se de um corpo que, antes de qualquer esforço interpretativo, antes de qualquer processo hermenêutico, experimenta a imagem como afecção, de um modo, diríamos, i-mediato. O corpo animal é, assim, aquele em estado de natureza, existindo em uma ordem pré-simbólica e se deixando afetar livremente pelo cinema. Poder-se-ia dizer ainda: o cinema como segunda natureza. A figura do animal emblematiza um corpo de emoções, maquínico e pré (ou pós)-humano, espectador ideal de um cinema tornado (segunda) natureza. Sua principal forma de afecção é o espanto, sensação que, em boa medida, presidiu a emergência das ciências naturais no século XVII. O objetivo deste trabalho, portanto, é refletir sobre essa possível linhagem de um cinema da ordem da animalidade ou do pós-humanismo. Para tanto, tomaremos como foco de análise e representante “ideal” dessa categoria a singular obra de Olivier Smolders, Nuit Noire (2005), na qual os temas da animalidade, da relação entre natureza e técnica e das conexões entre ciências naturais e espanto são representados de forma paradigmática. Em seus momentos iniciais, a ciência natural ainda não havia se rendido à narrativização e racionalização que viriam caracterizar a noção moderna de ciência. O império da ordem como força externa e universal ainda não se estabelecera. De forma semelhante, o cinema das origens, o “cinema das atrações”, se caracterizou por um modelo de espectador ligado ao fascínio com as maravilhas tecnológicas e por uma forma cinematográfica não narrativizada, não inteiramente racionalizada. Ao tomar o problema da animalidade como questão central e escolher uma ambiência e imagerie de inspiração essencialmente surrealistas, Nuit Noire funciona como interessante instrumento para se pensar um outro tipo de cinema, elaborado no diapasão da vida não domesticada e das puras sensações. |
|
Bibliografia | Agamben, Giorgio. The Open: Man and Animal. Stanford: Stanford University Press, 2004.
|