ISBN: 978-85-63552-14-3
Título | OS LUGARES DO BICHO-ESPÍRITO |
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Autor | Bernard Belisário |
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Resumo Expandido | "Olho bem, o monstro. O monstro para cima de monstromim. Encontro-o."
(Paulo Leminski – Catatau) As Hipermulheres (2011) é o resultado de uma frutífera parceria entre o realizador indígena Takumã Kuikuro, o antropólogo Carlos Fausto e o então editor do Vídeo nas Aldeias, Leonardo Sette. Rodado inteiramente na aldeia Kuikuro de Ipatse, no Alto Xingu, o filme dá a ver traços da presença dos itseke, bichos-espíritos monstruosos que habitam a cosmologia e mundo xinguano. Na primeira parte do filme, onde o ritual surge de maneira menos "adensada" (Mello, 2005), o fora-de-campo se faz presente principalmente na sua dimensão mítica, como sugeriu Brasil (2012) ao analisar o filme guarani Bicicletas de Nhanderu (2011). Se o fora-de-campo pode fazer insistir ou subsistir no campo a presença de um "algures mais radical, fora do espaço e do tempo homogêneos" (Deleuze, 1983: 32), em As Hipermulheres, esse lugar é certamente habitado pelos itseke. Acionado tanto pelo discurso dos xamãs quanto pelo desempenho destes na cura ritual da doença de Kanu, o fora-de-campo não pára de desdobrar o campo nessa zona de sombras (Comolli, 2010) ou de invisibilidades. O corpo de Kanu é a superfície na qual os itseke deixam os rastros da sua afinidade predatória (Fausto, 2012). Por outro lado, é antes por aspectos bastante visíveis e audíveis (do "dançável" e do cantável) do ritual que a interação entre itseke e humanos (kuge) pode se estabelecer em segurança. Na mise-en-scène ritual-documentária da grande festa feminina, a câmera se põe a "dançar" com as Jamugikumalu, seguindo de perto as índias que percutem seus chocalhos, guizos e pés por toda a aldeia cantando as músicas que Ulejalu e suas irmãs cantaram para se transformar em mulheres-monstruosas, em Hipermulheres (conforme nos narra Kanu no filme). Na medida em que é capturado pela dança das mulheres é o próprio filme que se transforma, que se metamorfoseia pouco a pouco, tal qual as mulheres das aldeias pelas quais passaram as mulheres-espírito – que se punham a segui-las dançando e cantando as perigosas músicas transformacionais. Se em Histórias de Mawari (2009) os intercâmbios e metamorfoses rituais vão, pouco a pouco, onceando o filme (Brasil, 2013), em As Hipermulheres, o ritual, nos seus momentos adensados, vai monstrificando o filme. Contudo, ainda que o ritual torne indistintos o olho da câmera e o olho do bicho-preguiça (Maia, 2011), como é o caso do primeiro filme, nunca deixamos de ver o ritual e mundo como humanos. Um último aspecto fílmico refere-se então a uma espécie de transformação do próprio olho da câmera. Ao fazer uso da captação noturna em infravermelho (nightshot) o filme dá a ver imagens invisíveis ao olho humano. Ainda que esse procedimento não apareça no filme de forma recursiva ou mesmo intencional – como o são as interferências que "ecoam" as imagens dos corpos no filme Xapiri (2012) – mas residual, acreditamos que não deva ser ignorado, por se tratar de um modo do olho, até onde sabemos, inédito no contexto dos filmes que figuram o mundo ameríndio. "Trata-se, evidentemente, de fatos acidentais, mas nós preparamos um sistema de acidentes bem refletidos, um sistema de anormalidades aparentes que exploram e organizam os diversos fenômenos" (Vertov, 1923: 63). Ao analisar os resultados obtidos pela interferência nos mecanismos da máquina de filmar, Vertov vislumbra as potências não-humanas e hiperbólicas deste olho outro. Afinal, é pela anormalidade (como adoecimento) do olho que se pode ver o invisível dos espíritos no Alto Xingu. |
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Bibliografia | BRASIL, André. Bicicletas de Nhanderu: lascas do extracampo. In: Devires, 9 (1), 2012. No prelo.
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