ISBN: 978-85-63552-14-3
Título | A ambiguidade homem-animal em Mal dos Trópicos. |
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Autor | Henrique Codato |
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Resumo Expandido | A dualidade homem/animal é trabalhada de forma primorosa em Mal dos Trópicos (Apichatpong Weerasethakul, 2004), mostrando não apenas uma humanização dos animais, mas, igualmente, uma animalização do homem, o que embaralha bastante qualquer tentativa de diferenciação ou de identificação mais rígida ou determinista entre essas duas categorias. A montagem alternada entre o rosto do homem e a cara do tigre que, intervaladas, perfazem a sequência final do filme, é paradigmática nesse sentido. Nela, o homem e o animal são registrados em primeiro plano, simetricamente posicionados em relação à câmera (tanto em angulação, quanto em distanciamento), desafiando o espectador a participar de um “duelo de olhares”, ora encarando o soldado, ora o tigre. Isso revela uma proposital triangulação provocada por esse jogo especular, conquistada através da inclusão de um terceiro olhar – do espectador – que hesita entre dois pontos de certa forma incompatíveis, mas, paradoxalmente, complementares, servindo tanto de garantia para a instabilidade que atravessa a narrativa, quanto de testemunha para o derradeiro embate entre o homem e o animal.
Nesse caso, parece que “é a troca e não a identidade, o valor fundamental a ser afirmado” (CLIFFORD apud VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 206). Através do perspectivismo, defendido por Viveiros de Castro (2002), o homem branco se distingue dos outros animais, sem deixar de partilhar com eles uma mesma origem biogenética, um mesmo fundo biológico, por assim dizer. A ideia é a de que a cultura seria, metaforicamente, uma espécie de invólucro, uma roupagem que, uma vez retirada, abandonada, mostraria a desnudada verdade de que somos, de fato, animais. No entanto, a cosmologia ameríndia vem pressupor um estado primordial da vida no qual todos os seres vivos transitariam por variadas formas antes de, finalmente, se fixarem em uma delas. Assim, esses povos acreditam que, de fato, é o corpo animal que teria esse caráter indumentário, escondendo um fundo humano, uma essência humana. Isso significa dizer que é a condição humana e não a natureza animal que vem preencher e significar todos os seres do mundo, transformando cada espécie em um centro de consciência distinto. Ao tomar o próprio corpo como o elemento que diferencia os animais entre si e o homem – uma corporeidade não mais pensada como uma construção biológica, mas, sim, como algo construído ao longo da vida e por meio das relações sociais – , o perspectivismo coloca em questão as noções de sujeito e de substância, privilegiando o caráter relacional da realidade e abandonando a concepção de um mundo dado a priori. Isso faz com que o xamanismo ganhe destaque nesse contexto. Considerado uma “técnica do êxtase” (ELIADE, 1998), o xamanismo se refere à capacidade que possuem certos humanos de “cruzar barreiras corporais e adotar a perspectiva de subjetividades não-humanas” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.468). A “função xamânica” estaria associada àquilo que o autor chama de “interioridade social de natureza substantiva” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 471), isto é, ao surgimento de valores tais como a ancestralidade (marcada por uma continuidade diacrônica entre os vivos e os mortos) e a hierarquia (descontinuidade sincrônica entre vivos). Mondzain (2011) reconhece na própria imagem cinematográfica uma função xamânica, na medida em que ela também traria em si mesma a possibilidade de despertar tais regimes temporais. Segundo ela, há, na imagem, uma energia sísmica que faz com que tudo troque de lugar, abrindo-se para outro regime de consciência. A figura do xamã e o artifício da metamorfose tornam-se fundamentais para pensarmos um tipo de arte que possibilite a produção da alteridade por meio da semelhança e vice-versa (LAGROU, 2007). Propomos, assim, uma análise de Mal dos Trópicos a partir da relação entre o eu e o outro, que, a partir do chamado “pensamento selvagem”, se tornam muito mais complexas e relativas, com fronteiras menos rígidas e mais moventes. |
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Bibliografia | BATAILLE, G. L’Érotisme. Paris: Les éditions de minuit, 1957
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