ISBN: 978-85-63552-14-3
Título | Corpo, comunidade e cotidiano em Milestones eEsse amor que nos consome |
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Autor | Erly Milton Vieira Junior |
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Resumo Expandido | Ao se pensar a esfera cotidiana e os afetos que por elam circulam, uma categoria importante com a qual nos deparamos é a do comum. Se alguns autores, como DI LEONE (2011) enxergam um zeitgeitst voltado para o relacional como característico deste início de século, o próprio termo “comunidade” passa por uma retomada conceitual a partir do final dos anos 70, em autores como Barthes, Nancy e Espósito. Estes, embora bastante distintos em suas concepções, convergem ao pensar a existência comum não mais como uma totalidade homogênea e estável, pautada por um sujeito coletivo, mas sim como um “estar em relação” (NANCY, 2000) entre indivíduos em constante devir, cujas singularidades são afetadas a cada novo encontro que se dá na imprevisibilidade e instabilidade da esfera cotidiana.
Daí se pensar a comunidade como incompletude, “sem obra” (Jean-Luc Nancy) ou como uma comum desapropriação do individual, um “sair de si” para se criar essa nova e efêmera partilha – ao resgatar etimologicamente o termo communus, Roberto Espósito propõe pensarmos o munnus a partir de sua equivalência ao donus, ou seja ao dar, ao doar-se. E, neste caso, temos um “viver junto” que se faz não na homogeneidade, mas na conjugação das diversas idiorritmias (termo proposto por Roland Barthes) individuais, permitindo uma diversidade de modalidades de encontro, “que se desregula e se engendra na fluidez aleatória dos tempos e dos episódios” (CESAR, 2007: 20). É a partir dessa revisão conceitual que se propõe, aqui, iniciar uma reflexão sobre os modos como o cinema contemporâneo se apropria da ideia de comunidade e ressignifica, através de sua linguagem, os afetos que lhes são inerentes. Como isso se traduz na materialidade fílmica, na forma como os corpos são filmados? Para isso, foram escolhidos dois filmes, realizados com um intervalo de quase quatro décadas, para contextualizar também essa reconfiguração do conceito de comunidade: Milestones (Robert Kramer, 1975) e Esse amor que nos consome (Allan Ribeiro, 2012). Em comum, ambos têm o fato de serem obras que hibridizam documentário e ficção dentro de uma tessitura que emula, a partir de uma investigação microscópica empreendida pela câmera, o espaço-tempo cotidiano, com alguns rasgos de artifício que irrompem dessa aparência realista (no caso do filme de Kramer, os momentos de encenação, não necessariamente ligados cronologicamente aos depoimentos e diálogos; no filme de Allan Ribeiro, as intervenções coreográficas da companhia de dança, ora na paisagem da cidade, ora dentro do casarão que passa a ser sua sede). "Milestones" é filmado em plena ressaca das utopias de maio de 68, da resistência à guerra do Vietnã e do movimento hippie, com a falência de suas “comunidades alternativas”. É um contexto de crise do comum como estabilidade totalizante (PELBART, 2007), em que a utopia do paz e amor cede espaço ao imaginário da “década do eu”. Nele, Robert Kramer acompanha um conjunto de indivíduos norte-americanos, “lacunarmente entrelaçados” (DANEY, 2007), reaprendendo a construir novas alianças e integrar-se a novas grupalidades, buscando outros espaços (daí a errância de muitos deles pelo território dos EUA) e reinventando suas próprias singularidades. Aqui, a câmera investiga essa reconfiguração dos anseios individuais e os afetos que os cercam a partir de planos de conversas entre dois ou mais personagens, enquadrados com muita proximidade, ora conduzindo-os, ora deixando-se conduzir. Já o filme de Allan Ribeiro partilha de um outro desejo de comunidade, contemporâneo, ao registrar a chegada de uma companhia de dança afro-brasileira a um casarão no centro do Rio de Janeiro. A câmera registra toda uma vontade de se fincar raízes e partilhar um espaço-tempo comum com a vizinhança e os microeventos do entorno do imóvel, em longos planos, muitas vezes fixos (alguns em plongeés), ora assumindo-se como tableaux ora proporcionando diversos flagrantes dos corpos que não cessam de se mover pela potência que os engendra. |
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Bibliografia | ANDRADE, Fábio. “O entusiasmo como resistência”. In: Revista Cinética, setembro de 2012.
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