ISBN: 978-85-63552-14-3
Título | Imagens secas em ambientes líquidos: as cinefotografias de Jeff Wall |
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Autor | leandro pimentel abreu |
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Resumo Expandido | A tecnologia digital inaugura outras percepções a respeito da fotografia. Assim como outras técnicas de fabricação de imagens, como a pintura e a gravura, a fotografia analógica utiliza elementos líquidos no processo de produção. Com a retirada da água, a fotografia digital parece se aproximar ainda mais de um ideal, atingindo um alto potencial de realismo e de reprodutibilidade. Quando a fotografia chega a um corpo aparentemente mais perfeito (ideal que só se torna possível com a própria ausência de um corpo), percebe-se que aquilo que parecia ser a sua natureza não difere substancialmente de outros tipos de imagem que, assim como ela, também carregam o traço de um gesto gravado. A cada passo da vida de uma imagem, ocorrem interferências que a constituem. Na asséptica imagem digital, por sua vez, os traços do processo são imperceptivelmente apagados. Essa imagem que escamoteia o seu processo de fabricação e a sua trajetória é, paradoxalmente, aquela que o desvela de modo mais preciso.
Nesse contexto, o artista canadense Jeff Wall, através de suas imagens e de seus textos, propõe uma reflexão sobre os usos da fotografia a partir de questões a respeito da própria arte e de sua história. Como um ilusionista, Wall provoca o espectador ao oferecer uma imagem realista que já se mostra antecipadamente enganosa ao escapar daquilo que ficou estabelecido como fotográfico: a impressão luminosa de uma cena no momento em que se pressiona o botão do disparador. Suas montagens, apresentadas em caixas de luz retroiluminadas (backlights) como as usadas em anúncios nas ruas, conjugam vários tempos distintos. Como observou o próprio artista, o que o atraiu para o uso do painel luminoso foi ele não ser fotografia, não ser cinema, não ser pintura, não ser publicidade, mas ser fortemente associado a isso tudo. O brilho que vem da própria imagem produz uma analogia com a televisão, mas a escala e a qualidade faz com que ela se aproxime do dispositivo cinematográfico, em que a sala escura e a luminosidade da grande tela convidam o espectador para uma imersão total. Se a fotografia analógica se aproximava dos modos mais tradicionais de fabricação de imagens pelo uso de líquidos na revelação e uma maior sujeição ao acaso, na fotografia digital, com a retirada completa da água de todas as etapas de produção, evidencia-se o domínio da técnica sobre a inconstância da natureza, entregue às mutabilidades misteriosas de leis fluidas. Entre essas duas fotografias, a úmida (suja e utópica) e a seca (limpa e ilimitada), surge uma imagem mixta. Imagem enxuta em um ambiente fluido que se transforma em um jogo dialético desenvolvido no dispositivo criado por Wall. Não se trata de abrir a caixa-preta e apresentar os usos, criticar as crenças, os limites e os deslimites da própria fotografia. Wall assume o papel de arqueólogo, só que, ao invés de habitar o lugar asséptico e controlado da imagem digital ou preservar a inconstância úmida da fotografia analógica, coloca os fragmentos recolhidos em um ambiente híbrido. Suas fotografias servem como ponto de convergência onde se encontram tempos e meios distintos. Elas figuram a fluidez dos gestos, presentes não somente na vida cotidiana como também no cinema, na literatura, na pintura e na própria fotografia. Fotografias de imagens, fragmentos que compartilham uma superfície comum, límpida e seca. Local que adquire uma dimensão concreta e ganha movimento, apesar de estática. Nela, diversos vestígios chegam higienizados e homogeneizados através do registro fotográfico, que rompe com os limites entre o real e o imaginário. Ao se aproximar do cinema, Wall se afasta da utopia fotográfica e daquilo que ficara por demais explícito em uma crítica generalizada do dispositivo, tecendo uma fusão entre o documento e a ficção. Com essa operação, ele mostra de modo cristalino o movimento fluido dos corpos, apresentados com detalhe e definição nas grandes e luminosas fotografias, onde o invisível de cada gesto se manifesta. |
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Bibliografia | BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987.
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