ISBN: 978-85-63552-14-3
Título | Cenas da vida comum: o ordinário como estética no cinema brasileiro |
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Autor | fernanda ribeiro de salvo |
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Resumo Expandido | Em seu ensaio intitulado Vida Precária (2011), Judith Butler apresenta uma questão fundamental para refletirmos sobre a política da representação e das imagens num momento em que a vida ordinária alcança crescente visibilidade pela mídia. Butler se pergunta o que nos vincula à alteridade e de que forma entramos em relação com o Outro (compreendido pela autora como as pessoas que habitam vidas precárias). Em suma, ao tomar esse tópico, ela está preocupada com a representação da alteridade - gesto que abrigaria antes de tudo uma questão ética. No seu entendimento, as práticas de representação gravitariam entre as possibilidades de humanizar e desumanizar. Não haveria nenhum vínculo entre o “eu” e o Outro pré-existente, senão aquele que se instaura quando surge a questão ética do reconhecimento de sua humanidade. A autora recolhe em Emmanuel Levinas a noção de “rosto” para mostrar como a abordagem do Outro é uma questão de responsabilidade que se encerra no mandamento “Não matarás”. Desse modo, o compromisso ético de “não matar” estaria ligado ao ato de encarar o rosto do Outro. Ao mesmo tempo, segundo a autora, há outro ponto importante em Levinas, quando ele situa que para representar humanamente esse rosto, algo deve ser fraturado na representação. Com efeito, para exprimir o humano a representação deve falhar, e, sobretudo, apresentar essa falha. Assim, deve-se assumir que há algo de irrepresentável no humano. “O rosto não é apagado nessa falha de representação, mas é constituído exatamente nessa possibilidade” (BUTLHER, 2011, 27). Esse “constituir-se” do rosto é que conferiria ao Outro uma potência (contida nas formas de vida), assegurando-lhe a possibilidade de ser múltiplo, uma vez que o Outro está muito mais próximo das diversas faces que o constituem do que de particularidades definidas no interior das identidades demasiadamente fixadas (AGAMBEM, 1993).
Introduzimos essas reflexões (de modo bastante sumário) para situarmos nossa inquietação acerca da reiterada presença do homem ordinário e das cenas da vida comum no cinema brasileiro recente. Nosso intuito é mostrar como parte da produção nacional tem utilizado procedimentos imagéticos e narrativos de forma a se opor à crescente espetacularização oferecida aos temas do banal e da experiência comum. Para tanto, cotejaremos dois filmes: O Céu sobre os ombros (Sérgio Borges, 2010) e Avenida Brasília Formosa (Gabriel Mascaro, 2010) que empregam estilísticas que se abrem às formas sensíveis do mundo ao produzem na cena uma contigüidade entre o filme e a vida que seria facilitada por meio de planos duradouros, montagem discreta e tomada do cotidiano como um ponto de vista. Contudo, é imperioso destacar que tais filmes não podem escapar do dilema da representação de que nos fala Butler, portanto, assumimos que eles abrigam as tensões constitutivas da relação entre cineastas e sujeitos filmados, moduladas por diferentes graus de alteridade. Nossa hipótese, porém, é de que suas estratégias narrativas estão inventando maneiras de lidar com esse dilema da representação ao conceder espaço para que o Outro se constitua na encenação. Talvez por isso possamos afirmar que os filmes em questão se ofereçam como processo (quando o processo não é a instância à priori que define o resultado que vemos, mas corresponde ao próprio filme); ao mesmo tempo há a presença do regime documental que se permite contagiar por estratégias ficcionais, nas quais se nota a ficcionalização dos “eus” (relacionada a auto-mis en scène dos personagens) - trabalho esse que dificulta os enquadramentos e identidades rigorosamente estabelecidos; além disso, observa-se o abalo da exterioridade clássica que marcava as construções representacionais em privilégio do realizador em cena. Todas essas escolhas carregam implicações estéticas e políticas, pois interferem na ordem das visibilidades, propondo um novo regime do sensível e uma forma talvez mais “humana” de encarar o Outro, como propõe a reflexão de Butler. |
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Bibliografia | AGAMBEM, Giorgio. A comunidade que vem. Lisboa: Presença, 1993.
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