ISBN: 978-85-63552-14-3
Título | Intensidades em Madame Bovary, de J. Renoir, e Charulata, de S. Ray |
|
Autor | Heron Formiga |
|
Resumo Expandido | Partimos de Charulata (1964), filme do cineasta indiano Satyajit Ray, e articulamos ao seu redor algumas meditações sobre o neorrealismo cinematográfico e seus pontos discordantes em relação a um outro tempo de cinema, o cinema clássico, do qual Madame Bovary (1933), de Jean Renoir, nos serve de exemplo. Acreditamos que, em Ray, a intensidade dos signos e das situações sensório-motoras (como diria Deleuze) do primeiro cinema – tão presentes em Bovary e no bovarismo – são “dessublimados” pelas soluções realistas.
Perguntamos aqui pelo temperamento dos anos 1930 e 40, justo o tempo em que, segundo Deleuze, o cinema – seu pathos, duração e ornamento; seus matizes técnicos, laborais e dramatúrgicos – tempera-se de nova intensidade e de novos signos, sendo este momento entrementes, portanto, o momento que assinala "o interesse de Deleuze pelo acontecimento radicalmente novo" (AGUILAR, 2008, p.38), pelos lugares e instantes de dobra e dissenso. O que antes se via nas imagens e que nelas desapareceu? De que natureza, aliás, é esta imagem que deixou de ser possível e também desta outra que começou a pulsar? Trata-se, é claro, da intensidade particular do que Deleuze chamou de "situações óptico-sonoras puras"; tal expressão, de certo modo, resume a qualidade dos novos conjuntos sígnicos mobilizados por este cinema novo, neorrealista, em oposição aos signos particulares do primeiro cinema, do cinema clássico. Os planos neorrealistas eram longos, abertos e estáticos; os atores, sobre nenhum deles ouvia-se falar, pois eram, muitas vezes, amadores ou mesmo não-atores – de maneira geral, uma geração despreparada de dramaturgia e de teatralidade; o drama, aliás, vinha dessublimado, sem recompensas para os que mereciam, sem tragédia para os desafortunados e sem promessas de amor para os enamorados. A imagem-tempo diz de um detalhe, de miudezas e de vestígios, abrindo um novo campo para os corpos e, consequentemente, para o olhar (um novo campo de visão); uma imagem contemplativa dos gestos. Destacamos alguns destes gestos nos dois filmes que nos servem de entrada às extremidades deleuzianas, numa ponta com Madame Bovary, de Renoir, e na outra com Charulata, de Ray. Não se trata de um consenso as associações seja do filme de Renoir ao cinema clássico, seja de Ray ao cinema moderno. O lugar de Ray era, de fato, dos mais intrigantes: espectador dos realistas, bem como da produção indiana (intensa já nos 1950), o autor assistiu também à emergência dos chamados Terceiros Cinemas, dos novos cinemas terceiro-mundistas que se articulavam sob o chamamento político dos manifestos. Ray estava aí envolvido, mas seus primeiros filmes deslizavam entre os problemas de representação levantados por cineastas como Glauber Rocha, Fernando Solanas, Ousmane Sembène etc. e uma certa ternura sempre pródiga em seus personagens, certa delicadeza das formas e dos afetos. O cinema de Ray é um cinema da ternura; de uma ternura resistente à precariedade, aos malogros cotidianos e à falta de fortuna – algo que o autor tem em comum com o Renoir do final dos anos 1930 e início dos 1940, guardada a marcante distinção neste último de uma doçura cínica, de uma cordialidade esquizofrênica, a própria “grande ilusão” (sobre ambos, é comum escutar, por exemplo, que não há vilões em seus filmes). E a respeito de Renoir, finalmente, é curioso que tenha lançado Bovary em 1933 e que seu filme seguinte, lançado um ano depois, seja Toni (1934) – este, segundo Bazin, talvez o primeiro dos grandes filmes neorrealistas. Se recuperamos as junções de Bazin entre neorrealismo e literatura, entre câmera e letra, não parece ostensivamente simbólico que o último filme de Renoir antes da entrada neste novo momento seja uma adaptação justo do romance de Flaubert? Não seria Madame Bovary, de certa forma, uma despedida do cinema? |
|
Bibliografia | AGUILAR, Gonzalo. Gilles Deleuze o la armonía del cine. In: Kilometro 111. Santiago Arcos Editor, no. 07, março/2008 (pp. 37-54).
|