ISBN: 978-85-63552-14-3
Título | “O Inspetor” de Arthur Omar: da fabulação ao gestus |
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Autor | Rodrigo Guéron |
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Resumo Expandido | “Qualquer filme sobre ele era uma maneira de falsear a sua identidade” (Arthur Omar)
A proposta de nossa apresentação é relacionar o filme documentário de Arthur Omar “O Inspetor” com o que Deleuze entende ser uma alternativa que viabilizaria o que ele chama de “cinema político moderno”, diante da crise que diagnostica no “cinema político clássico”. Afirma Deleuze: “Resta ao autor a possibilidade de se dar ‘intercessores’, quer dizer, de tomar personagens reais e não fictícios, mas colocando eles mesmos em estados de ‘ficcionar’ por si próprios, de ‘criar lendas’, ‘fabular’. O autor dá um passo no rumo de suas personagens, mas as personagens dão um passo rumo ao autor: duplo devir” : (DELEUZE, 1983. p. 289). A crise do cinema político clássico teria feito aparecer um cinema político onde não é mais possível representar um povo em sua unidade: “o povo falta”. Exatamente por isso já não é mais possível também uma “tomada de consciência política” que deveria ocorrer na passagem do privado ao público. No terceiro mundo, por exemplo, o povo só existiria em estado de minoridade (Idem, p 286). Mas é entre as minorias, diz Deleuze, que os assuntos privados se tornam imediatamente assuntos políticos. É neste contexto que o filósofo propõe que os autores possam se dar “intercessores” que teriam a função de acionar um movimento criativo do autor à medida que este “desse um passo em direção aos seus personagens”. Personagens que, por sua vez, passariam a ter o próprio autor como um intercessor, e assim se poriam imediatamente a “ficcionar”, a “fabular”; movimento definido como um “duplo devir”. Como diz a frase de Omar que está no início deste resumo – a primeira fala do filme – não há identidade a ser mostrada. Mas esta imagem deleuziana do “duplo devir” chega a nos parecer insuficiente para dar conta do filme de Omar, por isso propomos a hipótese de encontrarmos nele, na verdade, “múltiplos devires”. Isso porque o diretor encontra um personagem que já tem a fabulação como a sua atividade principal. O “inspetor” é Jamil Warwar, um detetive da polícia civil do Rio nos anos 1970, conhecido por desvendar vários crimes e prender muitos criminosos, graças à capacidade que desenvolveu de assumir diversos personagens. Trata-se então de um documentário sobre um personagem que não para de se desdobrar em devires criativos, em fabulações diversas. Os “mundos” mesmo onde ele entra são mundos ficcionais, universos de fabulações: personagens estupradores de mulheres, mundo de travestis pobres de uma cidade da periferia – fabulações de gênero e de corpo –, gangues de traficantes. E as dobras infinitas das fabulações não param aí. O Inspetor vira personagem da imprensa policial e ainda é convidado para protagonizar fotonovelas. Arthur Omar entra numa intercessão com o Inspetor e constrói a sua fabulação fílmica, colocando o próprio inspetor para fabular diante das câmeras, falando de si mesmo. Mas há uma operação estético-política que distingue a fabulação de Omar – o filme propriamente dito – de todas as outras ficções em torno e a partir do inspetor. Trata-se da operação de identificação do “gestus”, em especial como Deleuze lê esse conceito de Bertold Brecht e o identifica nos cinemas de Cassavetes e de Godard (Idem, p. 250). Nesse sentido arriscaríamos dizer que o próprio inspetor tem mais uma vez uma função ativa no filme de Omar, mas neste caso é no afastamento dramático brechtiniano que caracteriza a identificação do "gestus". O “inspetor” ajuda Omar a operar uma espécie de “desfabulação”, de desconstrução dos mitos, das performances e das "mise en scène" que caracterizam a polícia, e a espetacularização midiática de suas ações. "O Inspetor" encontra aí toda a sua força como filme político, e talvez seja por isso que o próprio Omar declara no filme: “O teatrólogo alemão Bertold Brecht teve vários seguidores no Brasil. O Inspetor foi talvez o mais original deles” |
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Bibliografia | DELEUZE, Gilles. L’Image-Temps. Paris. Les Edition de Minuit, 1983.
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