ISBN: 978-85-63552-14-3
Título | Stories we tell: autobiografia como reflexão sobre o documentário |
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Autor | Julia Scamparini |
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Resumo Expandido | “Stories we tell” (2012), da cineasta canadense Sarah Polley, é um documentário sobre sua mãe, Diane Polley, falecida no início de sua adolescência, cuja história é construída através dos depoimentos de familiares, amigos e colegas de trabalho. A análise que aqui se propõe apresentar sobre este filme é parte de uma investigação mais ampla sobre autoficções cinematográficas e literárias, que por sua vez insere-se na perspectiva dos estudos em intermedialidade.
Na literatura, Klinger (2007, p. 24) localiza as autoficções “no coração do paradoxo deste final de século XX: entre o desejo narcisista de falar de si e o reconhecimento da impossibilidade de exprimir uma ‘verdade’ na escrita.”. É a época em que o retorno do autor coincide com o retorno do real, mas são diferentes de então: a sensibilidade do autor tanto se refere a uma poética quanto a uma afetividade do próprio sujeito, ou seja, uma poética que identifica o autor do ensaio com seu objeto; além disso, o real não é mais objetivado, mas perpassado pela psicanálise, que o simboliza individualmente pela crença no inconsciente. Hoje as autoficções são uma forma de “escrita de si” que vem proporcionando novas formas de abordagem da subjetividade, de reflexão sobre linguagens e gêneros, de concepção de memória, e, no cinema, geralmente vinculam-se mais ao documentário do que à ficção. Neste âmbito, um dou trabalhos autoficcionais mais notáveis apresentado no último festival de cinema carioca – o qual foi selecionado, antes e depois, por outros festivais de maior ou igual importância – é este filme de Polley. Ao registrar as narrativas de seus familiares a respeito de sua mãe, a cineasta não esconde o aparato cinematográfico: ela própria aparece em cena dirigindo as entrevistas, câmeras, tripés, luzes e equipe lhe fazem companhia, seus irmão dirigem-se a ela como interlocutora. Neste jogo dentro e sobre o cinema, as imagens do arquivo familiar vão construindo uma Diane Polley que, de início, concorda com os depoimentos colhidos, constituindo-se como documento. Com o desenrolar do filme, porém, os testemunhos vão se distanciando das imagens, desencadeando nos espectadores a expectativa de uma revelação – que será atendida mais à frente – e evidenciando a arbitrariedade da montagem, tanto do material imagético como do verbal. As imagens, assim como as declarações sobre a história pessoal, podem ser retomadas e remontadas justamente porque contém uma força independente. A forma tradicional do documentário é, portanto, posta à prova ao mesmo tempo em que é a ferramenta mais essencial do filme: este fundamenta-se em depoimentos e arquivo de imagens, os quais, contudo, se apresentam desvinculados um do outro; e a concepção de testemunho, enraizada em uma concepção de “verdade” – é isto o que a cineasta parece estar buscando – é tão impregnada das variadas subjetividades individuais que o próprio conceito de “testemunho” se vê deslocado pelas várias narrativas que vão se entrelaçando. Além da reflexão sobre o cinema documentário como dispositivo, Sarah Polley insere em seu filme elementos característicos da narrativa ficcional, como a investigação, a revelação e a reviravolta, e expõe um fato marcante de sua autobiografia, assim conseguindo explorar temáticas várias relacionadas à família e à memória. A autobiografia, a confissão, o cuidado de si, tipicamente individuais, vão ganhando, através de seu trabalho reflexivo, alcance coletivo. Neste documentário o exercício da subjetividade vive em função da arte, dando potência a uma política da memória sem fugir de seu papel de promover beleza, reflexão ou, pelo menos, inquietação. |
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Bibliografia | BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: Razões práticas: sobre a teoria da ação. Trad. Mariza Corrêa. Campinas: Papirus, 1996.
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