ISBN: 978-85-63552-15-0
Título | Godard e o eterno retorno da música da morte |
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Autor | Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim |
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Resumo Expandido | Em vários de seus filmes, o cineasta Jean-Luc Godard fez uso de música do repertório clássico preexistente. Gorbman (2007) associa essa característica a um procedimento autoral. Ao mesmo tempo, tais trechos funcionam, dentro do intrincado sistema de citações do diretor, como uma referência a algo presente no mundo e, portanto, citável. Mais ainda, o retorno do mesmo trecho de um filme a outro evoca uma rede intertextual de significados, tal como a associação à morte que assumem o Concerto para clarineta K622 de Mozart e a Sonata para piano op. 14 n.1 de Beethoven.
O início do Concerto para clarineta foi utilizado em Acossado (1960) e em Masculino-Feminino (1966). Em Acossado, é ouvido no final do filme quando a personagem Patricia o coloca para tocar na vitrola e, diferentemente do que acontecera até então, seu namorado, o assaltante Michel, não se incomoda com tal repertório, afirmando ter sido seu pai clarinetista. Godard disse que incluiu a peça nesta sequência próxima ao fim do filme e à morte de Michel, pois acreditava, erroneamente, ser esta a última obra de Mozart (in: BABY, 1960). Em outro texto, o diretor fez menção ao “som mortal da clarineta em Mozart” (GODARD, 1965), embora a tonalidade de lá maior e características do tema não pareçam denotar esse sentido. De todo modo, na manhã seguinte, Patricia denuncia Michel à polícia, o que leva à morte do protagonista. Em Masculino feminino (1966), o concerto é retomado e, apesar de estar em circunstâncias menos trágicas que em Acossado, também ocorre a morte do protagonista Paul no final do filme (embora não seja mostrada; é somente relatada). O trecho do concerto é ouvido, agora de forma extradiegética, no meio do filme, após Paul se lamentar ao amigo Robert sobre a dificuldade de se relacionar com Madeleine. Numa jogo de palavras de cunho sexual, reparam que, em masculin, há “cul” e, em féminin, não há nada. Ouvimos, então, a música sobre o rosto paralisado de Paul. A amargura também está no sentido dos intertítulos que aparecem a seguir, uma citação de Pour Lucrèce, de Jean Giraudoux, peça sobre a famosa personagem da Antiguidade que se suicida após ser estuprada. O diálogo que antecede a música é uma referência ao sexo, mas traz também a ideia da morte (lembremos que orgasmo, em francês, é la petite mort). Porém, Paul e Robert estão errados: no final do filme, Godard nos mostra que, em féminin, retirando-se a parte do meio da palavra, ficamos com o termo “fin”, numa referência à mulher como o fim (e, no último plano do filme, vemos Madeleine na polícia depondo sobre a morte de Paul). A referência à morte em momentos de música também está em O demônio das onze horas (1965). Durante a fuga dos dois protagonistas para o sul da França, Ferdinand (o mesmo Jean-Paul Belmondo de Acossado) diz que começa “a sentir o cheiro de morte”. A seguir, liga o rádio e ouvimos o concerto La tempesta di mare, de Vivaldi, enquanto, ironicamente, o carro cai troca de tiros que mata Marianne (Anna Karina), Ferdinand se suicida e, nos créditos finais, ouvimos a coda do primeiro movimento da Sonata para piano op.14 n.1 de Beethoven, marcada pela ambiguidade dos modos maior e menor (o que é reputado produzir efeitos de alegria e tristeza, respectivamente), num filme em que o cheiro de morte e a tortura se dão numa França ensolarada. Este mesmo trecho é retomado diversas vezes em Made in USA (1966), filme que já começa com um assassinato – sem nenhum peso dramático, como se fosse algo corriqueiro - e que tem, como protagonista, a mesma Anna Karina. Sobre a repetição, Deleuze (1968) afirma que seu princípio não é o do Mesmo, mas sim o do Outro, que compreende a diferença. É como o eterno retorno de Nietzsche (1992), um movimento vertiginoso que faz Dionísio voltar sempre como herói da tragédia grega, travestido em diferentes personagens. É como as frases de Mozart e Beethoven, máscaras da morte em diferentes filmes de Godard. |
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Bibliografia | AUMONT, J. Lumière de la musique. Cahiers du cinéma, n.437, nov. 1990.
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