ISBN: 978-85-63552-15-0
Título | Ê, gado manso! Ê, saudade! : uma análise da escritura sonora de Aboio |
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Autor | Cristiane da Silveira Lima |
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Resumo Expandido | Para os propósitos deste trabalho, propõe-se uma análise do filme Aboio (Marília Rocha, 2005), que integra o corpus da pesquisa Música em cena: um estudo dos componentes sonoros da escritura do documentário brasileiro . Primeiro longa da cineasta mineira Marília Rocha, o filme percorre a paisagem árida do sertão brasileiro em busca de sujeitos que usam um certo tipo de canto - o aboio - para tanger os bois.
Filmado em diversas fazendas de Minas Gerais, Bahia e Pernambuco, o filme conjuga imagens em preto e branco, tomadas em super 8, com imagens em cores capturadas em formato digital; e uma complexa tessitura sonora, que reúne os cantos dos boiadeiros, a voz falada dos homens, a voz dos animais, os ruídos do mundo tomados em direto, sons sintetizados, trilha musical. O desenho de som é assinado por Bruno do Cavaco e a mixagem e trilha sonora original é do coletivo O Grivo, que desde o final dos anos 90 vem realizando diferentes formas de experimentação sonora. Compondo verdadeiros "ensaios audiovisuais poéticos" como descrevem Consuelo Lins e Cláudia Mesquita (2008), ao filmar a paisagem à contraluz, bem de perto, roçando a vegetação, Aboio nos convida a experimentar o sertão a partir da perspectiva de quem o atravessa (Mesquita, 2012). "Valendo-se entre outros procedimentos, de travellings no meio da caatinga, entre troncos e galhos secos, no ritmo do cavalo e na cadência de quem vê “de dentro”, Marília Rocha cria uma paisagem “transfigurada”, subjetivada, vivida" (LINS e MESQUITA, 2008, p.63). Amparando-se fortemente nos cantos (cujas origens remontam a um passado histórico, mas também a um tempo mítico) e nas histórias dos vaqueiros (permeadas pelas lembranças dessa prática cultural em vias de desaparecimento), o filme empreende, ainda, a construção de paisagens da memória, o que ocorre não sem certa dose de melancolia. Tanto na imagem quanto no som, o filme sugere texturas, sobreposições, fricções, passagens, deslizamentos. Arriscamos dizer que voz, música, ruído e silêncio são tratados de forma não hierárquica no filme, compondo um verdadeiro continuum sonoro (FANO, 1986; DALLAIRE, 2014). Como escreve Mattos: "a prosódia roseana dos vaqueiros, as toadas do aboio, os mugidos e ruídos do campo, juntamente com as ambiências de O Grivo, chegam aos ouvidos do espectador como padrões sonoros do sertão reconfigurados em música. Não há mais uma hierarquia que privilegie a voz sobre os demais componentes (...)" (MATTOS, 2013, p. 39). Isso se deve sobretudo à capacidade do filme de escutar e incorporar à sua escritura aquilo que vem dos próprios sujeitos filmados. Como vemos em cenas em que os vaqueiros cantam e contam histórias, por vezes imitando, com suas vozes ásperas e guturais, o som produzido pelos bois. Além disso, a voz, menos do que suporte da expressão verbal (CHION, 2008), é portadora de uma musicalidade própria, mesmo quando é ouvida em seu registro falado (e não cantado). Ao materializar em sua própria escritura a relação de vizinhança entre os homens, os animais e a paisagem, Aboio gesta um mundo (CARDINAL, 2014). O sertão surge, assim, como lugar-cosmo, onde homem e animal estão integrados ao mesmo ambiente, "na vida e na morte", "no tempo e no espaço", "num único destino, pois são irmãos de cavalgadas" (PEREIRA, 2010, p.1). |
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Bibliografia | CARDINAL, S. Une écoute qui geste un monde. Paris, Institut national d’histoire de l’art, 2014.
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