ISBN: 978-85-63552-15-0
Título | Dois símbolos de Portugal: Stimmung de uma nacionalidade |
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Autor | Ana Isabel Soares |
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Resumo Expandido | Segundo Hans Gumbrecht, o conceito de stimmung caracteriza-se por ter simultaneamente uma faceta física, fisiológica (um som, por exemplo, que somos capazes de percepcionar) e traços imateriais ("o ângulo desde o qual o passado nos atinge” e desde o qual conseguimos atingir o passado). Trata-se de uma “ambiência”, ou de um “clima,” que liga um receptor à linguagem de um tempo que não é aquele em que imediatamente vive e habita. O enunciado “a música transporta-nos” descreve esta sensação, e certamente que os filmes podem ser entendidos como exemplos de espoletadores de stimmung. Partindo desse pressuposto, pretendo analisar os filmes Os Verdes Anos (Paulo Rocha, 1963) e Continuar a Viver: Os Índios da Meia Praia (António da Cunha Telles, 1976) e, a partir da interpretação que deles farei, considerar de que maneira duas melodias, criadas propositadamente para aquelas películas, se autonomizaram e ganharam estatuto de símbolo de dois importantes períodos do século XX na história de Portugal e na história do seu cinema.
É antes de mais por imagens visuais de Lisboa que Os Verdes Anos nos transporta – mas o filme de Paulo Rocha revela ainda a cidade através das imagens sensíveis da música de Carlos Paredes (1925-2004), compositor e intérprete da guitarra portuguesa que, incitado por Paulo Rocha, compôs a melodia de título homónimo ao do filme. O tema “Verdes Anos” viria a autonomizar-se do filme para se associar a um sentimento da cidade, da juventude, da busca de sonhos e da sua permanente interrupção. Mesmo no presente, uma pessoa que tenha vivido em Portugal os últimos cinquenta anos e não tenha visto o filme tem grandes probabilidades de reconhecer, desde os primeiros acordes, a sequência sonora de Paredes. A toada de “Verdes Anos” evoca o ambiente de uma cidade que atrai e impede, que seduz e é fatal. É uma melodia que faz conviver essas irreconciliáveis sensações num único espaço musical, como se o seu digladiar tivesse de ocorrer, uma vez mais, na clausura de um lugar desesperançado. O stimmung estabelecido pela composição é toda uma atmosfera que vai além da tela, ou da sala do cinema: implica um modo de entender a cidade e aquele tempo – o de Lisboa e o dos jovens portugueses de classe média que imigravam para a cidade para subir na vida. Implica até, se pensarmos nos dias de hoje, uma certa maneira de compreender o cinema (pelo menos um certo cinema português, que dali eclodiu), e um tipo específico de malaise de meio do século, encavalitado que este se encontrava nas suas necessárias ligações ao passado (as duas guerras, a herança ainda latente do século XIX) e num olhar que se queria limpo, raso, claro, em direção ao futuro. O filme de Cunha Telles deu origem a uma composição de José Afonso (1929-1987), um cantautor de intervenção, e a um percurso semelhante ao da melodia de Carlos Paredes em Os Verdes Anos. Desta feita, o ouvinte da canção ou o espectador do filme é transportado para o momento de viragem de Portugal de uma longa ditadura para o regime democrático, em 1974. Se se limitar a ouvir a canção, estará imbuído de uma ambiência revolucionária que associa o som e a letra de Zeca Afonso ao povo que construiu as suas casas com as próprias mãos, numa época em que se adivinhavam alvores de poder democrático sem igual; saindo, porém, dessa interpretação e adentrando uma apreciação mais aprofundada, que integre as imagens e os significados de Continuar a Viver…, o stimmung do filme devolve ao espectador uma sensação de crítica da revolução, algo latente que a distância histórica convida a reavaliar. |
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Bibliografia | AUMONT, Jacques, As Teorias dos Cineastas, São Paulo. Papirus Editora, 2008.
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