ISBN: 978-85-63552-15-0
Título | O furador e o filmador: imagem, cultura e tecnologia no vídeo Xavante |
|
Autor | Samuel Leal Barquete |
|
Resumo Expandido | Este artigo propõe a análise de uma certa produção audiovisual indígena recente, tendo como foco as relações entre imagem, cultura e tecnologia. Toma-se como objetos fílmicos preferenciais alguns trabalhos dos cineastas xavantes Caimi Waiassé e Divino Tserewahú, e do documentarista Belisário Franca, procurando entendê-los como conjunto de imagens que investem na abertura de um campo de possibilidades. Recorre-se ainda uma etnografia de um processo de documentação audiovisual do ritual xavante Danhono (Leal, 2012), propondo uma problematização teórica baseada no lugar que a câmera de vídeo ocupa, construindo assim uma situação paradigmática para a análise.
Os filmes dos cineastas xavantes em questão mostram momentos-chave da vida social, tanto pela sua importância local, quanto seu poder em afirmar uma identidade. São imagens possível ao mesmo tempo em dois regimes de arte (Rancière, 2005): ético, pois estão subsumidas nessa origem e finalidade identitária e tradicional; e estético, pois distinguem uma singularidade, própria à cultura indígena. Tal singularidade implica no agenciamento de redes que extrapolam o campo imagético, e por isso demandam relações extracampo, as quais lhe são constitutivas (Brasil, 2012). O Danhono é um complexo ritual de passagem para a vida adulta, cujo momento-chave é a perfuração das orelhas com uma agulha de osso, operada pelo furador, o isapu'uwa. Tal gesto transforma a identidade social por meio da intervenção nos corpos, marcada por um cilindro de madeira no orifício aberto. Na cerimônia, homem, osso e madeira formam um complexo de seres humanos e não-humanos, dotados de uma agência inexistente em cada um separado. A filmagem do ritual é uma função que possui estatuto similar ao isapu'uwa. Aquele que filma é chamado dapotó'wa, pois é o operador da daptozé, a câmera. Aqui, homem e máquina também constituem um conjunto que adquire uma dimensão transformadora, iniciadora, por meio do gesto de captar as imagens do ritual, baseada na performance. O dispositivo-vídeo produz e faz circular signos de modo que a cultura xavante passa a existir não só na relação entre as pessoas, e das pessoas com as técnicas tradicionais ou assimiladas localmente, mas também na relação com as imagens técnicas, e nas relações entre as pessoas e essas imagens técnicas. Isso coloca o problema do contato intercultural mediado pelas imagens técnicas, a partir da teoria da caixa-preta, onde a complexidade do aparelho é limitador da ação humana, tornando o homem um apêndice da máquina. O “complexo 'aparelho-operador' é demasiadamente complicado para que possa ser penetrado” (Flusser, 1985, p.15). Se por um lado tal abordagem ressalta a distância ontológica entre o dispositivo do vídeo e essa alteridade que o acolhe, por outro limita as possibilidades de ação do indivíduo como operador. Por isso recorre-se aos conceitos de individuação e conjunto de Gilbert Simondon. Para ele, a individuação da tecnicidade marcou o fim de qualquer relação possível entre indivíduos humanos e indivíduos técnicos, transformando seus trabalhadores/operadores em meros espectadores do processo, excluindo suas individualidades do produto. Tal alienação não teria apenas um sentido econômico-social, mas também um sentido psico-fisiológico, que resulta da relação de descontinuidade entre indivíduos humano e técnico (1989). Existe em Simondon uma possibilidade de superação dessa situação, que passaria pela efetivação de uma cultura técnica, em que a coletivização dos meios de produção é uma etapa, mas deve passar por novas relações com os objetos técnicos. O rendimento que o vídeo ganha ao ser assimilado em contextos não-ocidentais o insere em redes que compreendem seres humanos, não-humanos e objetos técnicos, o que implica em um ambiente ao qual ele se associa. Coloca-se, portanto, uma nova condição para o seu funcionamento, onde a cultura local atua mediando os conjuntos maquínicos (Vandenberghe, 2010), fazendo comunidade com esse seres. |
|
Bibliografia | BRASIL, André. Bicicletas de Nhanderu: lascas do extracampo. In Revista Devires, v.9, n.1, pp. 98-117, jan/jun 2012. Belo Horizonte: UFMG, 2012.
|