ISBN: 978-85-63552-15-0
Título | A singularidade suplementada: “Homem comum”, de Carlos Nader |
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Autor | Mariana Duccini Junqueira da Silva |
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Resumo Expandido | Narrativas que se perfazem com a matéria-prima do real, as formas de dar a ver as singularidades no documentário contemporâneo têm nas experiências dos sujeitos ordinários uma abertura para o questionamento de representações estabilizadas (no que diz respeito às ideias de “povo” ou “classe social”) e uma dificuldade de fundamento: como fazer emergir traços de uma alteridade por meio de um específico atravessamento discursivo (o próprio filme) quanto a modos de existência que, de outra maneira, possivelmente nem ascenderiam à condição de relato.
Expressão de uma época em que o indivíduo é traduzido pelo cálculo estatístico, quando o “cada um” torna-se unidade contável e comparável, o homem sem qualidades (Miller, 2004) representa o triunfo dos valores medianos, em que o único é reposto pelo típico, como corolário da massa. Para Certeau (2000), esse homem, animado pelos diferentes fazeres cotidianos, sobrevém como categoria no correr do século 19, figura de um universal abstrato que faculta ao discurso “o serviço de aí aparecer como princípio de totalização e de reconhecimento” (p.62), acessível por uma operação do exterior que regula sua experiência de sujeito. Como aproximação conceitual, Agamben (1993) faz ver no homem qualquer o ser capaz de experimentar, na linguagem, uma experiência de si. Sem estar determinado por qualidades exclusivas, o “qual-quer” (aquele que quer) habilita-se em um espaço de desejo: “desejando e sendo desejado, o ser se faz espécie, se torna visível. E ser especial não significa o indivíduo (...). Significa ser um qualquer, um ser que é, indiferente e genericamente, cada uma das suas qualidades, que adere a elas, sem deixar que nenhuma o identifique” (2007: 53). Por um estatuto de natureza ética, que orienta um encontro entre sujeitos e uma duração compartilhada que se converte na experiência do filme, o documentário contemporâneo supostamente se autodetermina a acolher as expressões do homem comum em uma perspectiva não-reducionista, alheia às fixações em um tipo ou, contrariamente, à conversão do ordinário em transcendente. Um lugar para o homem comum que não se reduza a identidades unívocas, mas que possa assumir ambiguidades e dissimetrias de um modo próprio de estar no mundo. “Homem comum” (2014), de Carlos Nader, acompanha por duas décadas momentos da vida do caminhoneiro Nilson de Paula. Entre viagens, paradas na estrada, vivências com a família do personagem e eventos singulares, como a morte da mulher de Nilson e a emergência discreta de um conflito entre ele e a filha, o filme se constrói em torno de dúvidas metafísicas enunciadas pelo realizador, que as destina ao personagem em diferentes temporalidades. Mais do que o compartilhamento dessas questões, o documentário busca captar o transcorrer da experiência do protagonista de modo a lhe reconhecer uma singularidade, mas não uma interioridade psicologista. A obra não se esquiva a um intento interlocutivo, sobretudo quando o realizador expõe ao personagem as motivações do filme. Entretanto, pela estratégia de montagem, os gestos de Nilson são constantemente remetidos a um “além da experiência”, que o filme trata de suplementar. É nesse âmbito que as inserções de “Ordet” (1955), filme dinamarquês de Carl Dreyer, e de uma versão melodramática de “Ordet” realizada pelo próprio Nader, têm presença expressiva na montagem de “Homem comum”. Marcadas como contraponto ao documentário por sua apresentação em branco e preto, essas realizações aludem a aspectos metafísicos da existência, em que a palavra de um eleito mostra-se capaz de tocar o transcendente e de ressuscitar os mortos. Se essas imagens “do exterior” podem indicar uma associação metafórica do cinema com a imortalização do homem (o que se torna sensível com a encenação da morte de Nilson e, posteriormente, com o evento real), podem igualmente denotar que a experiência do sujeito comum não se legitima por si, mas depende de suplementações para além do que sua fala possa efetivamente dizer. |
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Bibliografia | AGAMBEN, G. A comunidade que vem. Lisboa: Presença, 1993.
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