ISBN: 978-85-63552-17-4
Título | O VELHO DO RESTELO, tributo à Arte |
|
Autor | Renata Soares Junqueira |
|
Resumo Expandido | O cinema de Manoel de Oliveira tem pelo menos duas características marcantes: a primeira é a sua capacidade de, sem deixar de ser fiel aos textos que adapta para exibição na grande tela, transformar esses mesmos textos em algo novo, produto que é, em última análise, surpreendentemente distinto do modelo que o originou; a segunda característica, não menos importante, é o seu método disjuntivo de composição, que provoca sistematicamente choques nos seus espectadores de modo a dificultar a identificação com o que na tela se apresenta. Seja mediante operações de decupagem que promovem rupturas na linearidade lógica da diegese ou que frustram as expectativas de senso comum dos espectadores, seja pelo enquadramento insólito ou pelo culto destemido dos longos planos fixos, seja ainda pela direção do trabalho dos atores, que são orientados a interpretar artificialmente os seus papeis, abandonando a mimesis naturalista, seja pela sugestão de diálogos tácitos que os seus filmes parecem estabelecer entre si, configurando assim uma rede bem urdida de remissões internas que o espectador desprevenido nem sempre consegue acompanhar – o fato é que Oliveira produz, com os seus filmes, um efeito de distanciamento do espectador muito similar ao que preconizava Brecht com o seu teatro épico.
Nesta comunicação pretendemos apontar alguns desses recursos epicizantes na mais recente película do cineasta, O VELHO DO RESTELO (2014), curta-metragem que suscita, à primeira vista, uma questão imediata sobre o seu conteúdo: − o filme fala de quê? Fala de derrotas coletivas como a de Portugal na Batalha de Alcácer-Quibir e a da Espanha quando da perda da Invencível Armada? Ou fala antes da velhice como uma espécie de derrota do indivíduo? Terá por pressuposto que falar de derrotas é condição sine qua non para definir a alma ibérica? Ou, afinal, é de artistas e de arte que o filme quer, sobretudo, falar? Com o intuito de apresentar respostas plausíveis a estas questões, veremos que o filme, que tem quase a mesma duração de DOURO, FAINA FLUVIAL (1931) e que, de certo modo, também evoca as “Litanias do fogo e do mar” – é este o tema, convém lembrar, da música para piano que Emmanuel Nunes compôs, em meados da década de 1990, para aquele primeiro filme de Oliveira –, parece fechar um longo ciclo, adotando os mesmos procedimentos formais que nos habituamos a ver nos filmes desse experiente realizador, mas ao mesmo tempo distinguindo-se das películas anteriores – muito marcadas, quase sempre, por fina ironia – pela notação de um tom sensivelmente melancólico. Os elementos ora articulados geram oportunos anacronismos e evidenciam uma não menos oportuna apropriação de fragmentos de outros filmes – AMOR DE PERDIÇÃO (1979), NON, OU A VÃ GLÓRIA DE MANDAR (1990) O DIA DO DESESPERO (1992) e O QUINTO IMPÉRIO (2004), todos do próprio Manoel de Oliveira, e ainda o DON QUIXOTE (1957) do ucraniano Grigori Kosintsev (1905-1973) –, fragmentos que suprem a compreensível falta de fôlego desta nova experiência de Oliveira, que reuniu num jardim do Porto, ao lado da sua própria residência, os seus mais diletos atores, todos muito bem caracterizados como velhos – Luís Miguel Cintra para interpretar Camões (c. 1525-1580); Ricardo Trêpa para fazer de Miguel de Cervantes (1547-1616); Mário Barroso para encarnar, mais uma vez, Camilo Castelo Branco (1825-1890); e Diogo Dória para representar o também escritor Teixeira de Pascoaes (1877-1952) –, e extraiu de obras literárias – o célebre episódio do Velho em OS LUSÍADAS, o D. QUIXOTE de Cervantes e O PENITENTE de Pascoaes (biografia romanceada de Camilo) – um retrato da alma ibérica apreendida na sua essencial ambiguidade de anjo e bruto, mística e sensual (como Teresa de Ávila), fatalmente movida pelo desejo de amplidão: ora atraída pelos mares ora pelos tórridos areais do Saara. Uma tão densa teia de remissões à literatura e ao próprio cinema estimula-nos a trazer O VELHO DO RESTELO ao âmbito das discussões sobre “Cinemas em Redes". |
|
Bibliografia | AREAL, Leonor. Cinema português: um país imaginado. Após 1974. Lisboa: Edições 70, 2011. v. 2.
|