ISBN: 978-85-63552-17-4
Título | O coral e a queima como métodos de cinema |
|
Autor | Érico Oliveira de Araújo Lima |
|
Resumo Expandido | Diante dos limites em filmar as ruas do próprio bairro com uma câmera de cinema, o realizador Leonardo Mouramateus passou a fotografar cães da vizinhança e festas pela cidade, usando uma câmera analógica que podia ser carregada no bolso. No curta-metragem A Festa e os Cães (2015), fotografar torna-se um modo de fazer cinema. As imagens fixas capturadas são arranjadas em uma prática composicional que articula, pelo menos, três gestos: um gesto de dispor fotos numa mesa, orquestrando uma dramaturgia com as mãos; um outro, que consiste em alterar as séries imagéticas pela montagem, inseridas com variações nos modos de entrada e saída das fotografias; e ainda o gesto de buscar uma medida de associação entre o visual e o sonoro, quando vozes vão se multiplicando para contar das experiências vividas no espaço urbano.
Essa fabricação fílmica reverbera o trabalho realizado por Hollis Frampton em 1971, (nostalgia), filme que integrava um projeto mais amplo do artista, Hapax Legomena (1971-1972), caracterizado por Frampton como “uma autobiografia oblíqua”. Ao longo de (nostalgia), ele desencadeia uma operação muito singular de narrativa de si, que consiste em apresentar fotografias em combustão, enquanto um narrador assume a posição de autor das imagens e fala, em voz over, daquilo que está implicado em cada foto. O gesto se repete ao longo de cada plano do filme, com dois detalhes importantes: a voz do narrador não é de Frampton, mas do amigo e cineasta Michael Snow, e a imagem descrita pelos comentários é sempre a que virá no plano seguinte. Se propomos tomar em cotejamento esses dois filmes, não se trata de traçar um romance de influências, mas de percorrer as singularidades dos procedimentos de cada um e pensar em que medida, por maneiras diferentes, os dois lidam com modalidades desviantes de colocar em cena experiência subjetiva e formas de cinema. A figura da queima, as cinzas e o contínuo jogo de descolamento entre palavra e imagem fazem de (nostalgia) um autorretrato completamente implodido, repleto de fissuras e de desidentificação. Como já observou Patrícia Mourão (2015), o que desponta aí é uma espécie de apagamento e de renúncia a uma identidade que seria refletida na imagem. Em A Festa e os Cães, a enunciação da voz over ora se aproxima mais do que se vê na imagem, ora se distancia. Não existe tanto a preocupação estrutural de Frampton, mas o método deriva para a costura de uma experiência de comunidade. O filme se afirma como um desejo intenso de falar da cidade, dos amigos e de uma despedida do próprio realizador, que se coloca em partida. Mas aqui também não se trata de imprimir no cinema dramas pessoais ou uma interioridade subjetiva constituída a priori. Trata-se, ao contrário, de inventar vidas no processo mesmo de filmar e montar, de embaralhar os centros de enunciação e de multiplicar rostos e paisagens, que progressivamente deixam de corresponder às palavras dos enunciadores. O filme constrói uma dramaturgia em coral, uma cena imaginada e performada que se arranja sobre a cena vivida. Da estrutura à composição, do eu apagado ao coral em comunidade, a experiência da narrativa de si é radicalmente posta em falso por (nostalgia) e é descentrada para uma cena comunal em A Festa e os Cães. Tudo gira em rodopio sem um eixo enunciador identitário, seja pelas dissociações geradas por Hollis Frampton, seja pelo povoamento musical operado por Leonardo Mouramateus. Como acionadores de algumas entradas conceituais nessas obras, pretendemos também trazer as noções de individuação e de subjetivação, com Simondon, Deleuze e Foucault. Se nos situamos nessa matriz de pensamento, é para afastar a subjetivação da perspectiva de um retorno a um sujeito e para efetuar uma abertura maior a um constante processo de defasagem de si. E nos princípios de individuação, encontramos uma chave para escapar de uma dimensão pessoal da experiência e para empreender mais trânsitos entre indivíduo e coletivo. |
|
Bibliografia | DELEUZE, Gilles. Conversações (1972-1990). São Paulo, Ed.34, 2010
|