ISBN: 978-85-63552-17-4
Título | Memória do cangaço: rupturas com o “modelo sociológico” nos anos 1960 |
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Autor | Joyce Felipe Cury |
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Resumo Expandido | Pretende-se analisar o documentário em média-metragem Memória do cangaço (1965), dirigido por Paulo Gil Soares, a partir do questionamento de sua possível filiação ao que Jean-Claude Bernardet (2003) denominou “modelo sociológico” no livro Cineastas e imagens do povo, obra na qual o autor explora documentários brasileiros realizados entre 1960 e 1980, percebendo tensões entre as vozes de seus discursos, notadamente entre a “voz do saber” (do cineasta) e a “voz da experiência” (de quem dá depoimento).
Memória do cangaço é um dos documentários que compõe o longa-metragem Brasil Verdade (1968), produção capitalizada pelo fotógrafo Thomaz Farkas, hoje identificada como a primeira fase do que convencionou-se chamar de Caravana Farkas. Justamente outros dois títulos que compõem o Brasil Verdade, Viramundo (Geraldo Sarno, 1965) e Subterrâneos do futebol (Maurice Capovilla, 1965), são tomados por Bernardet (2003) como exemplos de “modelo sociológico” de documentário. Tal modelo é pautado, resumidamente, por uma relação hierárquica sujeito-objeto, na qual o sujeito é o cineasta, dono da “voz do saber” e, portanto, do discurso; e o objeto são os entrevistados, representantes da “voz da experiência”, da vivência individual. Em outras palavras, aqueles que dão os depoimentos, notadamente o “outro de classe” em relação ao cineasta, são dissolvidos de sua condição de sujeitos, tornam-se objetos de estudo e falam para reforçar uma tese, um ponto de vista construído pelo cineasta, normalmente alicerçado por um saber científico, generalizante e de fora da experiência, daí o termo sociológico. Esse tipo de filme seria sintomático de um pensamento que permeava a intelectualidade brasileira na primeira metade da década de 1960, em grupos como o Cinema Novo, o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e o CPC (Centro Popular de Cultura), de que caberia ao intelectual o papel de ser o “porta-voz” do povo, o responsável por promover sua desalienação e a transformação da sociedade, no caso, por meio da produção cultural. No documentário de Paulo Gil Soares, seus créditos iniciais o definem como um “filme pesquisa”, coadunando com o modo como está estruturado, com apresentação do tema, a colocação de uma questão, desenvolvimento e conclusão. Há ainda um agradecimento ao catedrático Estácio de Lima, que dá entrevista, no caso, questionado sobre a origem dos cangaceiros. Tais informações poderiam conduzir, precocemente, a uma leitura do filme como sociológico. A locução assertiva em voz over (do próprio diretor), que aparece sobretudo na primeira metade do documentário, seria mais um elemento que levaria a tal identificação. No entanto, outros momentos do filme encaminham para uma leitura diversa e são sobre essas situações que refletiremos na comunicação: a) a dúvida sugerida pela locução quanto à plausibilidade do discurso acadêmico de Estácio de Lima, colocando em xeque este personagem e em âmbito mais amplo a autoridade intelectual; b) a entrevista com o vaqueiro “Seu” Gregório, na qual Paulo Gil aparece enquadrado fazendo perguntas ao trabalhador, “lado a lado” com o “povo”, rompendo com a exterioridade na tomada diante do sujeito filmado; c) a ambiguidade da figura do coronel Zé Rufino (matador de Corisco), não construído de forma unívoca no filme, apenas como um personagem do “tipo coronel”, mas dotado de alguma subjetividade, inclusive sendo, em algumas ocasiões, quem conduz a narrativa do documentário; d) a “não-entrevista” com Dadá, viúva de Corisco, em que a mulher derruba a câmera, negando-se a dar depoimento e, mesmo assim, tal situação é mantida no filme, o que não ajuda a confirmar uma possível tese do cineasta, mas configura-se como um procedimento interativo e reflexivo – para lembrar as modalidades documentais sugeridas por Bill Nichols (1997 e 2010) – não usuais no documentário brasileiro realizado até então; e) os versos da poesia popular de cordel nos letreiros finais, admitindo o documentário como construção do real. |
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Bibliografia | BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
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